Localizado a 6 quilômetros de Garanhuns, maior cidade do Agreste Meridional de Pernambuco, o Quilombo Castainho tem sentido o impacto do crescimento desordenado dos centros urbanos. Uma das principais lideranças quilombolas da região, José Carlos da Silva, conhecido como Zé Carlos do Castainho, de 65 anos, observa ao longo do tempo o avanço da zona urbana sobre a zona rural. Só nos últimos 30 anos, ele relembra, viu as águas da nascente do Rio Mandaú se tornarem inutilizáveis por conta da poluição e falta de saneamento, e, em alguns pontos, até mesmo secarem.
“Prejudica muito, principalmente em Garanhuns, uma das cidades com mais esgotamento irregular. A água servida na cidade cai todinha no rio que passa na comunidade. Há uns 40, 50 anos atrás, a gente pescava no rio de manhã e de tarde, todos os dias. Hoje não tem mais pesca, não tem mais peixe, não tem mais fonte”, lamenta.
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A maior parte da renda da comunidade vem da agricultura, sobretudo do cultivo e beneficiamento da mandioca, cujos produtos são vendidos para Garanhuns e mais oito municípios do entorno. Mas até essa produção tem definhado. “Quando tinha água sadia, tinham mais de cem famílias plantando verdura. Hoje tem cerca de 50. A cidade cresceu muito, mas a poluição triplicou. A água não serve para os animais, para plantar nada. Acabou mesmo com nossa vida”, conta.
Há aproximadamente três anos, os problemas se intensificaram quando dois loteamentos foram construídos próximos da comunidade, sem contar com a consulta dos moradores. Agora, o Quilombo Castainho está em alerta novamente enquanto encara outra ameaça: dois projetos de leis (PLs) propostos pela Prefeitura de Garanhuns que podem permitir a criação de núcleos urbanos na zona rural, alterando ilegalmente o Plano Diretor da cidade em vigência. Sindicatos, movimentos populares e comunidade acadêmica estão mobilizados para barrar a minuta dos textos, elencando uma série de consequências negativas que poderão provocar.
O caso de Castainho ilustra bem parte da problemática da ampliação da área urbana em detrimento da zona rural para os pequenos agricultores. A Rede Agreste de Agroecologia de Pernambuco (Reagro) já se posicionou contrariamente à medida, em carta assinada por 68 sindicatos, movimentos populares e partidos.
Além da questão da poluição e do descarte impróprio de dejetos no meio rural que tem seu impacto na produção agrícola dos produtores, os PLs podem acarretar na diminuição das propriedades dos trabalhadores, pontua Jenusi Marques, diretora de Organização e Formação Sindical da Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape) - uma das entidades signatárias.
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“Já ouvi [argumentos] de que não será um impacto tão grande, que é pequena a quantidade de terras. Mas, para um pequeno produtor, isso tem um grande impacto. Ele não é um agricultor com três, quatro hectares de terra. Geralmente é uma pequena área, e, uma vez que passar a ter empreendimentos urbanos, vai diminuir ainda mais e impactar diretamente em sua renda”, fala.
A alteração também poderá provocar problemas do ponto de vista previdenciário para os agricultores. Isso porque, para acessar a Aposentadoria Rural enquanto segurado especial, o trabalhador precisa comprovar que exerce atividade no campo, apresentando os documentos da terra onde trabalha. “Essa atividade não pode ser em um núcleo urbano. Nossa preocupação é se os agricultores vão continuar apresentando o IPR [Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural], ou se vão passar a ter Imposto Predial e Territorial Urbano [IPTU]. Porque se for IPTU, eles deixam de ser segurados especiais”, explica a sindicalista.
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Jenusi ainda levanta que levar o ambiente da cidade para o campo da forma que está sendo posta provocaria mudanças nas características locais dos territórios. “A gente sabe que a forma de se organizar do urbano é diferente do rural. Isso iria mexer na cultura, no modo de viver e de produzir dessas pessoas”, diz.
A falta de estudos produzidos sobre os possíveis impactos ambientais, sociais e econômicos para sustentar a proposta é outro ponto questionado. Segundo Jenusi, a Fetape deverá enviar um ofício ao Instituto de Terras e Reforma Agrária (Iterpe) nesta semana solicitando que o órgão entre na discussão e faça uma análise técnico da situação. À reportagem do Brasil de Fato Pernambuco, o Iterpe disse, nessa segunda-feira (25), ainda não ter recebido nenhuma demanda sobre o assunto.
Falta de participação popular e ilegalidades no projeto
Uma das grandes críticas ao projeto repousa na falta de debate público e de participação da sociedade civil organizada e das próprias comunidades da região. Josefa Eurenice da Silva, agente pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT) - outro movimento membro da Reagro -, conta que a organização ficou sabendo do projeto por meio de um programa local de rádio.
Na sua visão, os PLs favorecem a especulação imobiliária ao passo que afetam negativamente as famílias agricultoras. "O que a prefeitura quer com isso é legalizar todos os condomínios na zona rural que foram construídos até hoje e que estão irregulares, e abrir espaço para mais. E aí, como vai ficar o povo do campo? Já não tem muita zona rural, é muito pequeno o município. Esse povo vai para onde?”, questiona.
Além da Reagro, também se posicionaram desfavoráveis aos projetos de lei, por meio de nota, a Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE), o Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), a Universidade de Pernambuco (UPE) e o Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (Codema) de Garanhuns. Foi só após a mobilização e pressão popular que a Prefeitura de Garanhuns marcou três audiências públicas para falar sobre os PLs, realizadas entre março e abril.
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O advogado Gustavo Carvalho foi chamado por professores da UFAPE e pela Vinícola Vale das Colinas (localizada na zona rural de Garanhuns) para acompanhar as audiências e dar orientações legais. Em entrevista à reportagem, ele diz que o Projeto de Lei, do jeito que está posto, contraria os princípios do Direito Urbanístico brasileiro. “O Estatuto da Cidade (lei federal nº 10.257), a própria Constituição Federal, a Constituição Estadual e o Plano Diretor de Garanhuns preveem que o crescimento urbano da cidade deve se dar de forma planejada, ordenada e com participação popular”, levanta.
A arquiteta e urbanista Maria Braga, professora da UFAPE e membra do Conselho Municipal de Política Urbana (Compur) de Garanhuns, completa que os PLs também são ilegais por proporem alterações urbanísticas que só podem ser modificadas através do Plano Diretor - que, por sinal, não é revisado desde sua criação, em 2008. “Conforme consta no Estatuto da Cidade, todo município tem que revisar o Plano Diretor em um período máximo de 10 anos. O de Garanhuns fez 10 anos em 2018 e nenhuma ação foi feita para revisá-lo”, lembra.
O que dizem os projetos de lei?
Tratam-se de duas minutas de projetos de lei. Uma delas propõe a criação de um “núcleo urbano” na zona rural para a construção do conjunto habitacional São Vicente 3 no Sítio Papa Terras, e já nomeia a empresa responsável pelo serviço: a Viana & Moura Imobiliária, que construiu nos anos passados os condomínios São Vicente 1 e São Vicente 2 na zona rural de Garanhuns. A medida transformaria a área rural em uma Zona de Alta Densidade, o que já seria uma alteração do Plano Diretor.
Além disso, a construtora acumula problemas das experiências passadas, especialmente no que diz respeito a saneamento, de acordo com o advogado Gustavo Carvalho. “Está correndo uns 15 processos de moradores contra a Viana & Moura. O que mais chama atenção é um processo específico em que o morador demonstrou que o esgoto está caindo na casa dele”, afirma.
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A outra minuta dispõe sobre as Outorga Onerosas de Alteração de Uso e Parâmetros do Solo (OOAUPS) - como se chama o pagamento que uma empresa deve fazer caso construa imóveis que não se enquadrem nos parâmetros daquela região (por exemplo, parâmetros de número de pavimentos ou de altura da edificação).
A primeira versão desse texto previa a possibilidade de criação de núcleos urbanos dentro de um raio de 3 quilômetros após o perímetro urbano, avançando sobre a zona rural, mas a Prefeitura de Garanhuns a editou e fez uma outra minuta. O Brasil de Fato Pernambuco teve acesso a sua nova redação, que embora ainda não tenha sido publicada oficialmente nos canais da prefeitura, já circula internamente desde segunda-feira. As entidades têm menos de duas semanas para estudar o novo PL até a próxima audiência pública, marcada para o dia 9 de maio.
Nova versão do texto é avanço ou retrocesso?
Em nota enviada à reportagem, a Secretaria de Planejamento, Gestão e Desenvolvimento Econômico de Garanhuns falou que os cidadãos que possuem terras rurais terão seu “direito de permanecer nela, com suas características inalteradas, cultivando, criando ou, simplesmente residindo, sem perdas das garantias e direitos constitucionais”.
“Na proposta do PL da Outorga Onerosa foram retirados os artigos que criariam uma zona específica onde seria possível a criação de núcleos urbanos. Ficando este tema para maiores estudos por ocasião da revisão do Plano Diretor. Com relação à proposta de PL de criação de núcleo urbano para o conjunto habitacional São Vicente 3, este continua em análise, inclusive já foram realizadas duas audiências públicas e, por agora, estão ocorrendo visitas técnicas, para obtenção de dados junto a moradores residentes no entorno da área em estudo", informa.
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No entanto, contrariando o que diz o município, os especialistas fazem uma primeira análise diferente. O advogado Gustavo Carvalho avalia que a minuta mais recente representa um retrocesso ainda maior em relação à antiga. “Antes o projeto previa a criação de núcleos urbanos limitados a um raio de três quilômetros a partir da sede, agora não há qualquer limite. A minuta foi alterada passando a ter um potencial ainda mais prejudicial à política urbana sustentável e planejada. Em tese, ilhas urbanas poderão ser criadas em qualquer localidade do município, bastando haver vontade política para tanto”, classifica.
A especialista Maria Braga faz a mesma ponderação. “O que a gente verifica é que, embora tenham enxugado bastante o PL anterior para resultar nesse novo, algumas inconsistências ainda existem. Ele não está mais falando em ‘uso na zona rural’, mas está dando margem a. Quando a gente analisa o texto, tem que analisar os termos utilizados e o que está implícito. Ganho não teve, teve piora", fala.
Ainda segundo Maria, a nova redação não corrige a ilegalidade do projeto, pois segue propondo o uso de instrumentos urbanísticos que não estão previstos na legislação. “Para o texto ser aplicado, tem que estar constando no Plano Diretor do município. Se essa outorga onerosa que está sendo proposta não está no Plano Diretor, significa que não pode ser possível ser aprovada”, diz.
Edição: Vanessa Gonzaga