Após dois anos sem a realização de ato em razão da pandemia da covid-19, movimento populares, usuários da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e profissionais da saúde mental retornaram às ruas do Recife nesta quarta-feira (18), data em que se celebra o Dia da Luta Antimanicomial. A concentração teve início às 13h na Praça do Derby, na área central da capital. Os manifestantes caminharam pela Avenida Agamenon Magalhães carregando o tema "Trancar não é Cuidar: Liberdade e Resistência contra toda forma de manicômio".
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"A gente escolheu esse lema porque a gente entende que ele fala da nossa história de luta, da reivindicação por uma sociedade sem manicômios, mas que a gente tem muito a avançar", afirma a psicóloga Anny Souza, militante do Libertando Subjetividades - Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial de Pernambuco, movimento que mobilizou o "PasseAto" na programação da 10ª Semana da Luta Antimanicomial.
Ela lembra que o Brasil tem vivido um momento de ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos e de multiplicação de Comunidades Terapêuticas (CTs), a que se refere como "novos velhos manicômios"."Nossa luta é pelo fim dos manicômios físicos e também dos manicômios mentais - essa lógica manicomial de exclusão e violência", pontua.
A psicóloga ainda elenca outros pontos preocupantes que compõem o cenário atual, como o sucateamento da Raps, a dificuldade de ampliação da rede com a Emenda Constitucional que congela gastos em saúde e o investimento na rede privada. "a gente tem vivido principalmente de 2016 para cá uma série de retrocessos nas nossas políticas que foram instituídas com muita luta. Isso mostra a importância da nossa luta e também a fragilidade dessas conquistas na sociedade capitalista. A gente fica preocupado diante dessa situação", analisa Anny.
Todas essas questões se refletem em desdobramentos que são sentidos por quem acessa os serviços da Raps. Tony Renné, de 45 anos, é usuário do Caps AD Campo Verde - o único voltado para pessoas com problemas relacionado ao uso de álcool e drogas no município de Camaragibe, no Grande Recife -, e conta que o equipamento enfrenta uma série de problemas estruturais.
"Deixa muito a desejar. Hoje não tem água lá. As vezes não tem gás - e quando tem gás, não tem comida. Não tem como fazer almoço lá", denuncia o usuário.
Segundo ele, por conta disso, as atividades dos grupos terapêuticos - um dos serviços do Caps - foram praticamente interrompidas.
"Sempre tem algum empecilho para esses grupos não estarem acontecendo. Isso prejudica muito a gente. Cheguei em julho, participei de dois grupos e depois parou mesmo", lamenta. A reportagem do Brasil de Fato Pernambuco procurou a Prefeitura de Camaragibe para ter um posicionamento e aguarda retorno. O espaço está aberto.
Tony participou do ato também para cobrar por melhorias nos equipamentos da Raps. "Isso é mais um movimento para a gente conquistar as coisas que faltam em todos os Caps da Região Metropolitana do Recife, para que não chegue a faltar tantas coisas que deixam a desejar no tratamento do usuário. Cada movimento que é benefício nosso eu estou aqui, não é de hoje, faz tempo. Isso é muito importante para a gente conseguir nossas conquistas", fala.
Os profissionais da Raps que estiveram na manifestação também fizeram protestos nesse sentido. A enfermeira Débora Lima trabalha no Caps AD Campo Verde e é técnica de referência da Unidade de Acolhimento dos Camarás, em Camaragibe, e conta ser difícil lidar no dia a dia com o sucateamento. "A gente vê que não tem o investimento necessário para o cuidado em serviços substitutivo, e os gestores e políticos investindo nesses outros serviços asilares. Mas o Caps continua sendo forte, resistente, e continuamos trabalhando com as possibilidades que o território dá e nós funcionários podemos dar, mesmo com esse sucateamento", diz.
O psicólogo Jorge Luiz da Silva, que atua no Caps AD Espaço Travessia René Ribeiro, levanta que essa não é uma questão apenas municipal, destacando o processo de desinvestimento do Governo Federal, que é quem dá um direcionamento à política pública e garante boa parte do recurso para a efetivação dos serviços do SUS. "Ao mesmo tempo que se extingue o financiamento dos serviços da Raps, por outro lado se oferece financiamento bem expressivo para as CTs e agora diretamente o retorno dos hospitais psiquiatricos. O Governo Federal lançou um edital de R$ 10 milhões para reabertura de hospital psiquiátrico", critica.
Ainda assim, ele acrescenta que o movimento tem enfrentado dificuldades na cidade do Recife. "A gente tem um líder [o prefeito João Campos (PSB)] que de alguma maneira está alinhado com a bancada evangélica, e a gente tem uma bancada na nossa Câmara dos Vereadores que é de muito de base evangélica. Essa base está muito ligada porque são os donos das CTs, então o interesse está todo aí. A prefeitura lançou um edital oferecendo R$ 2,4 milhões para vagas em comunidade terapêutica, e nossos vereadores alinhados até tentaram cancelar, mas tivemos uma derrota esmagadora, porque é de interesse de quem está no poder no momento", aponta.
A passeata terminou no Parque Amorim, com um momento de música e ciranda, às 16h. Estiveram presentes no ato o vereador do Recife e pré-candidato a deputado estadual Ivan Moraes (PSOL) e o pré-candidato a governador Jones Manoel (PCB).
Edição: Vanessa Gonzaga