Na noite da última terça-feira (31), foi divulgada a sentença condenatória de Sarí Corte Real pelo crime de abandono de incapaz, no caso que resultou na morte do menino Miguel Otávio, de 5 anos, no dia 2 de junho de 2020. Sarí foi condenada a 8 anos e 6 meses de prisão em regime fechado, mas vai recorrer e responder em liberdade. A acusação, que está sob responsabilidade do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), também deve recorrer pedindo pena máxima de 12 anos para a acusada.
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A advogada Maria Clara D’Ávila, assistente de acusação, concedeu entrevista ao Brasil de Fato e explicou porque o grupo vai recorrer. “Na visão de Mirtes a pena não foi suficiente. Restam alguns pontos que o juiz não levou em consideração na análise da majoração da pena e vamos levar isso para o recurso”, disse ela. A advogada também explica que o procedimento é necessário para que os acusadores sigam participando do processo nas esferas superiores. “Se não fizermos isso transita em julgado também para a acusação. São questões processuais técnicas. Nós vamos até o final”, completa D’Ávila.
Apesar de insatisfeitos com a pena, a acusação destacou pontos da sentença condenatória. “A principal questão foi o reconhecimento de que Sarí de fato tinha responsabilidade sobre Miguel naquele momento e também tem responsabilidade sobre o resultado morte”, pontua a advogada. D’Ávila também lembra que a sociedade e o poder público são negligentes com crianças e adolescentes negros. “Esse caso é emblemático para tratarmos um tema muito presente nas vidas de crianças negras e suas mães. As pessoas e as autoridades devemos ter atitudes antirracistas para isso nunca mais se repetir”, completou.
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D’Ávila também lamentou a narrativa adotada pela defesa de Sarí, de que Miguel seria uma ‘criança desobediente’ e com má educação familiar. “Infelizmente essa narrativa contaminou todo o processo, foi tema recorrente nos depoimentos das testemunhas, com momentos de julgamento moral sobre essa educação e sobre a vida de Miguel. E até foi um tema citado na sentença”, diz a advogada.
Sarí responde em liberdade
Sobre o direito de Sarí Côrte Real poder responder ao processo em liberdade, apesar de condenada em 1ª instância, a advogada explica que isso está de acordo com a lei brasileira. “O trânsito em julgado da condenação se dá quando se esgotam todos os recursos. E no momento Sarí ainda tem possibilidade de recurso, então o princípio da presunção de inocência prevalece. As pessoas podem permanecer em liberdade até o fim do julgamento”, afirma a jurista.
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D’Ávila lamenta que esse direito garantido por lei não se estenda a todos os brasileiros. “Ela só recebeu esse direito porque ela é uma exceção, não tem ‘a cara’ da maioria dos presos no país. Queríamos que essa lei fosse aplicada de fato para todos, não o privilégio de alguns. Mas quase 40% dos presos não Brasil são presos provisórios”, apontou.
O caso
Mirtes Renata, mãe de Miguel, era empregada doméstica na residência do casal Sérgio Hacker e Sarí Corte Real, respectivamente prefeito e primeira dama do município de Tamandaré. A mãe de Mirtes, Marta Santana, também trabalhava para o casal. As duas alternavam-se entre a casa da família no litoral sul de Pernambuco e o apartamento no Recife, no condomínio de luxo Pier Maurício de Nassau (conhecido como uma das “torres gêmeas do Recife Antigo”).
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Apesar da pandemia, ambas foram mantidas trabalhando. Com as escolas fechadas, não havia com quem deixar a criança, Miguel Otávio. No dia 2 de junho de 2020, Mirtes levou o filho para o trabalho, no apartamento do edifício Pier Maurício de Nassau. Ainda pela manhã, quando saiu para passear com o cachorro do casal, Mirtes deixou o filho de 5 anos sob os cuidados da patroa, Sarí Corte Real.
O menino Miguel quis encontrar a mãe e Sarí colocou a criança sozinha no elevador. Pior: em vez de enviá-lo ao térreo, onde estava Mirtes, a patroa pressionou botões de andares superiores, gesto repetido pela criança. Miguel acabou saindo do elevador no andar errado e, na procura da mãe, acabou se debruçando num parapeito e despencou do 9º andar.
Com a morte, foi descoberto que, além de manter as empregadas doméstica irregularmente (em Pernambuco, entre março e junho de 2020 ficou proibido os patrões colocarem suas funcionárias domésticas), Mirtes e Marta eram pagas com verba da Prefeitura de Tamandaré, comandada por Sérgio Hacker. O prefeito do PSB tentou reeleição em 2020, meses após a morte de Miguel Otávio, obteve 43% dos votos e acabou derrotado.
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Grandes proprietários de terras urbanas e com negócios também no Recife, a família Hacker é uma das mais influentes na política e economia do litoral sul de Pernambuco, com poder simultâneo em três prefeituras (Rio Formoso, Sirinhaém e Tamandaré). Já a família Côrte Real é de figuras influentes na indústria, principalmente da construção civil, mas também representam os interesses empresariais na política. Se quiser entender melhor as duas famílias, clique aqui.
Edição: Elen Carvalho