Revolta e medo são os sentimentos que imperam nos morros de Jaboatão dos Guararapes. O município da Região Metropolitana do Recife foi o que mais contabilizou mortes em ocorrências relacionadas à chuva registradas em Pernambuco desde o último dia 23: foram 64 vidas perdidas do total de 129. Apesar de o fenômeno meteorológico ter atingido o estado com mais violência nas últimas três semanas, o problema está longe de ser novo. E a Superintendência Municipal de Defesa Civil sabe disso.
Ano após ano, a população enfrenta as consequências das inundações e deslizamentos na cidade onde há 37.309 moradores vivendo em 11.166 domicílios em áreas de risco geológico, segundo dados do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) de 2021. De acordo com a prefeitura, existem pelo menos cerca de 17,5 mil pontos de risco, fora os novos que surgiram com as últimas chuvas. A máxima "tragédia anunciada" não exaure sua aplicação.
Moradores alertaram de maneira contínua o poder público, sem ter retorno, dos deslizamentos de barreiras que sobreviveram e que previram que viriam a acontecer novamente, dado o risco que as encostas visivelmente apresentam.
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No bairro do Curado I, há quem trave essa luta por uma solução definitiva há nada menos que 30 anos. Uma batalha pela moradia digna e, mais do que isso, pela sobrevivência. Todo período de chuva é a mesma coisa: desmoronam trechos do talude da Rua João Claudino da Silva, conhecida como Rua Treze. O logradouro é o endereço do Conjunto Habitacional da Cohab Curado I - ou seja, foi construído legalmente pelo próprio Estado de Pernambuco.
Dessa vez, um dos vários deslizamentos atingiu o terreno onde mora e trabalha o mecânico Niberto de Moraes, de 42 anos, no sábado de fortes chuvas do dia 28 de maio. Nem ele nem a esposa se feriram, mas o barro invadiu o imóvel e quebrou uma caixa d’água.
Com a Defesa Civil atarefada atendendo as centenas de chamados graves que surgiram naquele dia, ele precisou comprar do seu próprio bolso e posicionar na barreira, com a ajuda dos colegas vizinhos, aproximadamente 70 metros de lona - cada metro custando cerca de R$ 6.
Niberto mora na rua há 32 anos e relembra o ano de 1992, quando um pedaço da barreira caiu pela primeira vez sobre uma casa próxima. Desde então, ele e os vizinhos pleiteiam a construção do muro de arrimo. Promessas vão e vêm, mas a tão sonhada obra de contenção nunca foi feita. Ao invés disso, são colocadas soluções paliativas, como lonas e, em um trecho específico, um muro que caiu com a intempérie da chuva e uma geomanta que também cedeu à erosão, relata ele. A proprietária desse primeiro imóvel destruído, por exemplo, morreu sem ver o problema ser resolvido. Hoje a residência já está sob posse de outra pessoa.
“É a sensação de que não tem ninguém pela população. Entra gestão e sai gestão, quem prometeu lá atrás não cumpriu e quem entrou também não fez, e estamos aqui à espera de uma solução que vem se cobrando há 30 anos e ninguém faz nada”, desabafa o mecânico.
Diante da falta de retorno do poder público nas últimas três décadas, o receio é de que o pior aconteça. “Temos 30 anos de luta e não saiu nada do papel. A gente fica vendo a hora de ter vítimas”, falou.
Niberto conta que, no último domingo (5), uma equipe da Defesa Civil de Jaboatão dos Guararapes vistoriou a rua, interditou alguns imóveis e informou que havia o risco iminente de deslizamento. Ele se recusou a assinar o documento de interdição do órgão municipal. “O que a prefeitura quer é que a gente se responsabilize por algo que venha a acontecer, quando é responsabilidade da prefeitura que não fez o serviço. Colocaram que me recusei a assinar e fizeram a requisição de que viessem com urgência colocar a lona no restante que falta, e, assim que puder, fazer o muro de arrimo”, conta.
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A secretária e artesã Eucilene Tavares, de 62 anos, outra moradora da Rua Treze, também cobra a responsabilização do município. “Se tivéssemos a condição de pagar aluguel, a gente não estaria aqui. E quem tem obrigação de pagar é o poder público, de arcar com essa responsabilidade. Essas construções são legais, foram feitas pelo poder público. Eles devem isso para a gente. Não é uma obra particular, é um conjunto residencial construído pelo Estado”, reclamou.
A demanda pelo muro de arrimo é uma briga que já chegou no Ministério Público de Pernambuco (MPPE). Eucilene é uma das pessoas que têm tomado a frente dos trâmites nos últimos meses. Segundo ela, um morador protocolou um ofício junto ao órgão fiscalizador em 31 de maio do ano passado, após uma parte do morro cair sobre sua residência. O MPPE teria solicitado esclarecimentos e providências da Secretaria de Serviços Urbanos e Defesa Civil, mas até agora não houve resposta, diz Eucilene.
Como a denúncia feita em 2021 dizia respeito apenas ao imóvel do requerente, os moradores estão se organizando para entrar com um novo ofício para abranger toda a extensão da Rua Treze. A comissão também planeja buscar ajuda por outras vias, como através do Governo de Pernambuco e da Assembleia Legislativa de Pernambuco. “Não vou mais recorrer à prefeitura, porque não tem respaldo nenhum em relação a isso. A barreira cada dia se deteriora mais e os riscos aumentam", pontua Eucilene.
À reportagem do Brasil de Fato Pernambuco, a Secretaria de Infraestrutura do Jaboatão dos Guararapes comunicou, por nota, que está ciente da situação dessa rua. “O projeto para construção de um muro de contenção está no planejamento de captação de recursos junto ao Governo Federal”, informou.
"A ausência do poder público é gritante"
Os problemas não se restringem à Rua Treze. A assistente parlamentar Maria Auxiliadora de Souza, de 46 anos, residente da Rua Nove, vinha denunciando desde 2019 a reforma irregular de um imóvel em cima da barreira por trás da sua casa. Há três anos, o crescimento desordenado dessa construção ameaça a integridade o talude. E, segundo Auxiliadora, o proprietário é um servidor da Defesa Civil municipal.
Ela e outro vizinho fizeram duas denúncias; ela, online, no site da Regional 3, e o colega, presencialmente na sede da Defesa Civil. Até o mês passado, diz a assistente parlamentar, o órgão nunca tinha tomado uma providência. Resultado: naquele sábado do dia 28, ocorreu o deslizamento parcial da barreira que atingiu sua casa. Só então, na segunda-feira seguinte (30), a Defesa Civil foi visitar o local, colocou lona e orientou a desocupação dos imóveis. De acordo com Auxiliadora, a ida foi articulada através da Coordenadoria de Defesa Civil do Estado de Pernambuco (Codecipe), após ela fazer uma solicitação a servidores estaduais. O morro precisou vir abaixo e o Governo recomendar a ação para que o município finalmente fosse averiguar pessoalmente.
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Auxiliadora tirou de casa sua mãe, de 71 anos, e a família alugou outro espaço nas redondezas, próximo ao local para conseguirem acompanhar a situação da encosta e do imóvel irregular. Na última quarta-feira (8), a Prefeitura de Jaboatão enviou outra equipe para avaliar a casa alvo das denúncias.
Em nota, a Superintendência da Defesa Civil do Jaboatão dos Guararapes informou à reportagem que “retornou à Rua 9, no Curado 1, para vistoriar o talude e manteve a interdição dos imóveis que ficam abaixo da barreira”. “A equipe também identificou situação de risco no imóvel construído no talude superior e a moradia foi interditada. No momento da vistoria, o imóvel estava desocupado”, completa o texto.
Até a questão dar sinal de avanço, a moradora teve que recorrer a todos os caminhos e contatos que conhece. Ela avalia que só conseguiu algum progresso por trabalhar no meio da política, já que há muitos outros logradouros na cidade na mesma situação. “Procurei todos os mecanismos, conheço os poucos que fui lá buscar, e mesmo assim estou encontrando dificuldade imensa. A ausência do poder público é gritante, principalmente Jaboatão. O prefeito desumano governa de costas para o povo”, afirma.
Na visão de Auxiliadora, os efeitos da chuva sentidos na periferia pintam um retrato atual da desigualdade no Brasil. “Os mesmos 750 mm que choveu naquele sábado [28], domingo [29] e segunda-feira [30], choveu também na região nobre de Piedade e Barra de Jangada. E lá, no máximo perderam carro. Aqui se perderam vidas, pessoas foram dizimadas sem perspectivas e ninguém para dar um amparo. É fácil fazer solidariedade, juntar pessoas e fazer sopão, mas quando você está sentindo na pele o que eu estou sentindo… Graças a Deus que não teve morte, e poderia ter tido, porque mainha, na hora, estava lá atrás de casa”, exprime.
Edição: Elen Carvalho