Na manhã da última sexta-feira (10), a Arquidiocese de Olinda e Recife (AOR) publicou em suas redes sociais um vídeo em que o arcebispo Dom Fernando Saburido anuncia que o seu ciclo a frente da arquidiocese se aproximava do fim. Nascido em 1947, ele completava 75 anos naquele dia 10 e, de acordo com o código canônico, os bispos devem renunciar ao cargo quando chegam a esta idade. A renúncia foi feita em comunicado enviado ao papa Francisco (leia a íntegra da carta). Mas qual como funciona o processo que escolherá o novo líder da Igreja Católica em Pernambuco?
Primeiro é preciso informar que o arcebispo não deixa o cargo de imediato. O papa pode sim rejeitar a renúncia, mas o comum é aceitar as renúncias por idade. Também existe a possibilidade de o papa acatar a renúncia de imediato e deixar a arquidiocese vaga (nunc pro tunc), temporariamente sob responsabilidade dos demais bispos, mas isso não é algo comum. Francisco deve acatá-la, mas o provável é que só o faça quando já houver escolhido o sucessor de Dom Saburido, num processo que leva meses, podendo passar de um ano de espera.
O monge católico Marcelo Barros, da ordem dos beneditinos como Saburido, alerta que o processo é menos individualizado no Vaticano. “Quando a gente fala ‘o papa’, estamos falando de modo simbólico. Não é o papa Francisco, mas o Vaticano, a congregação que hoje se chama ‘Dicastério dos Bispos’”, diz ele. O grupo é parte da Cúria Romana, que é o “governo” do Vaticano. “É como se fossem os ministérios, o secretariado do papa. É a Cúria que cuida da administração da Igreja Católica no mundo”, explica Barros.
Mas antes, no Brasil, o processo sucessório é conduzido pelo Núncio Apostólico (o representante diplomático direto da Santa Sé no país). O núncio no Brasil é o italiano Dom Giambattista Diquattro, nomeado em 2021 e tido como um conservador (leia seu perfil). Dom Saburido deve apresentar ao núncio um relatório das necessidades da arquidiocese. Giambattista deve avaliar a arquidiocese em conversa com outros bispos.
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Após avaliação, o italiano deve fazer uma lista com três nomes a serem analisados (também com consultas a bispos) e, posteriormente, os nomes e suas informações devem ser apresentadas ao Vaticano. Os nomes e informações apresentados pelo núncio são avaliados pelo dicastério destacado para auxiliar no processo.
O grupo emite opiniões sobre os nomes da lista e o papa tanto pode descartar as opiniões da congregação, como pode acatá-las e, caso não se agrade dos nomes indicados pelo núncio, o processo pode ser reiniciado. O processo corre, supostamente, sob sigilo total. Após decidido o nome, o novo arcebispo terá seu nome publicado no Boletim da Santa Sé.
Marcelo Barros, que defende uma igreja mais aberta, lamenta o método desse processo. “O núncio é muito decisivo. Os processos devem ser transparentes para serem democráticos. Mas na Igreja Católica não existe isso. Essa consulta às bases, o núncio faz do jeito que ele quiser, na medida que ele quiser e sem prestar contas a ninguém”, critica. Ele também problematiza o perfil de Giambattista. “É um diplomata conservador, sem nenhum contato ou conhecimento pastoral ou da realidade social. Então que critérios ele tem para decidir isso?”, questiona.
O religioso critica o formado adotado pela Igreja Católica a partir da Idade Média, comparando com uma “multinacional com suas filiais”. “A igreja é local. A palavra ‘igreja’ vem do grego e significa ‘assembleia’. [O atual formato] foi um desvio da coerência com o que seria a Igreja. Mas existe esse desejo para que se retorne àquele modelo”, diz Marcelo. O modelo que ele menciona é uma “igreja-assembleia”, em que os nomes sugeridos para suceder Dom Fernando Saburido fossem colhidos a partir de uma consulta local, envolvendo pastorais e leigos, para só então ser apresentada a lista ao núncio.
O núncio, inclusive, nem deveria ser o interlocutor do papa no Brasil, na avaliação de Barros. “O correto era ser a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cujo presidente foi eleito por outros bispos e se reúnem periodicamente”, diz ele, que considera como pessoas mais aptas a conduzir a sucessão os presidentes da CNBB nacional e da Regional Nordeste II (onde fica a arquidiocese de Olinda e Recife).
O próximo
Perguntado sobre o perfil a ser escolhido pelo Vaticano para ocupar a Arquidiocese de Olinda e Recife, Marcelo Barros foi taxativo: “não dá para prever nada”. “Não há critérios objetivos. Tudo é mistério e segredo. Depende do momento e o humor de quem vai decidir”, resumiu. Os últimos três arcebispos da AOR foram nordestinos: Dom Hélder Câmara é cearense, enquanto Dom José Cardoso Sobrinho e Dom Fernando Saburido são pernambucanos. Mas Barros negou que isso seja uma tendência a se repetir. “É totalmente aleatório. O atual arcebispo de Manaus (AM) é um catarinense, o de Brasília (DF) vem do Rio de Janeiro”, afirmou.
Mas o monge beneditino tem esperança que seja colocada em prática a “sinodalidade” da qual o papa Francisco tem falado. “Esse termo vem do grego e significa ‘caminhar juntos’, respeitando as igrejas locais. Então o que se espera é que as igrejas locais tenham o direito de opinar no processo de escolha de arcebispos”, pontuou.
Barros também negou haver uma alternância entre conservadores e progressistas. “Isso não está escrito e nem ocorre regularmente na história. O que aconteceu em muitas dioceses na década de 1980 foi resultado de uma postura da Cúria Romana e do papa João Paulo II para frear a Teologia da Libertação, frear a caminhada de uma Igreja mais inserida no meio do povo e de linha progressista”, diz ele.
Marcelo classifica como “desastrosa” a escolha de Roma de frear a Teologia da Libertação. “Não foi bom para ninguém – nem para Roma. Foi uma espécie de desrespeito às igrejas locais. Todo mundo perdeu”, diz o beneditino, que relaciona essa postura à perda de espaço do catolicismo em comparação às igrejas protestantes de linha neopentecostal. “A Igreja Católica perdeu pessoas da periferia porque não tinha mais comunidades eclesiais de base”, avalia ele.
Os anos de Dom Saburido na AOR
Em seus 15 anos à frente da arquidiocese, Saburido se envolveu em algumas polêmicas, como quando se posicionou publicamente contrário ao aborto mesmo em casos de crianças estupradas, como no caso de repercussão nacional de uma menina capixaba de 10 anos que fora violentada pelo tio e só conseguiu no Recife colocar em prática seu direito ao aborto legal. Na oportunidade, Dom Saburido fez eco a movimentos ultraconservadores alegando que o Recife estaria “criando fama de ‘capital do aborto’”.
Mas isso não faz Marcelo Barros considerar Saburido um conservador. “Dom Fernando é muito humano. É um homem de diálogo, humilde, simples e acessível. E cresceu aqui nessa região, conhecia os padres. Não veio de fora, não caiu de paraquedas. Mas encontrou aqui parte do clero e grupos católicos extremamente conservadores. Não foram anos fáceis”, diz o monge. “Mas não se pode normalizar o ‘clima de cruzada’, como ocorreu recentemente, com grupos católicos na porta do hospital hostilizando médicos e enfermeiros, pressionando pelo posicionamento de Dom Fernando”, diz Barros sobre o caso.
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O monge também destaca que a fala de Saburido passou longe do posicionamento radical de Dom José Cardoso Sobrinho. “Mas também não foi uma postura de diálogo, de conversar com médicos. Foi mais dogmática: a doutrina é esta e pronto”, lamentou.
Seu antecessor, o arcebispo Cardoso Sobrinho, havia ido além: excomungou (“tornou maldito”) os médicos, autoridades e familiares que permitiram a uma menina de 9 anos exercer seu direito ao aborto. A criança havia sido estuprada pelo padrasto e enfrentava risco de morte durante a gravidez, mas Cardoso Sobrinho condenou a decisão. “Dom Fernando nunca condenou ninguém ou excomungou. Nunca excluiu padre algum de arquidiocese. Penso que ele foi a melhor pessoa para fazer essa transição após o Dom Cardoso”, opina Marcelo Barros.
Mas, principalmente a partir do golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff (2016), Dom Saburido adotou uma postura mais ativa junto a causas sociais, colocando, em muitos momentos, a arquidiocese ombro a ombro com movimentos populares. Fez discursos duros contra o governo Temer e mobilizou as igrejas católicas contra medidas defendidas por Temer e Bolsonaro, a exemplo das reformas trabalhista (2017) e da previdência (2017 e 2019).
Após a eleição de Bolsonaro em 2018, divulgou carta em defesa dos Direitos Humanos. Semanas antes, ainda durante o processo eleitoral, seu bispo auxiliar Dom Limacêdo fora censurado pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE-PE) e proibido de falar sobre política. Saburido também liderou campanha de solidariedade com as comunidades atingidas pelo derramamento de óleo no litoral pernambucano e confrontou as posições do governo Bolsonaro na pandemia.
Durante a pandemia de covid-19, o arcebispo levou a Arquidiocese de Olinda e Recife a se somar à campanha Mãos Solidárias, encabeçada pelo Movimento dos trabalhadores Sem Terra (MST) e outras organizações, contribuindo para distribuição de mais de 600 marmitas diárias no Armazém do Campo, de domingo a domingo, para a população em situação de vulnerabilidade no Recife e região metropolitana, durante mais de um ano.
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No último dia 6 de junho, diante das fortes chuvas que caíram no litoral pernambucano e deixou 129 mortos além de 9 mil desabrigados, o papa Francisco pediu orações para as vítimas dos temporais e enviou 30 mil Euros (R$150 mil) para a Arquidiocese de Olinda e Recife, que repassa para a Cáritas diocesana reverter em doações que atendam as comunidades afetadas. Dom Saburido havia entregue uma carta ao papa dias antes, já que esteve com Francisco no dia 21 de maio. No fim de maio, também falou da situação trágica durante entrevista à Rádio Vaticano.
Antes de ser arcebispo
Nascido em Jussaral, distrito do Cabo de Santo Agostinho, estudou no Imaculada Conceição do bairro da Várzea (Recife) e fez parte do ensino médio na escola estadual Oliveira Lima (bairro da Boa Vista). Já com 30 anos de idade, entre 1975 e 1978, cursou Filosofia e Teologia no Mosteiro de São Bento (Olinda). Em 1978, professou seus votos como membro da Ordem de São Benedito e foi ordenado sacerdote em 1983. Na década de 1980, foi professor no Colégio São Bento.
Já pela Arquidiocese, foi administrador e pároco nas paróquias de Guadalupe e Ouro Preto (ambas em Olinda), vigário-geral, coordenador arquidioceseano e integrou o Conselho Presbiterial da AOR. No ano 2000, foi nomeado pelo papa João Paulo II bispo auxiliar na Arquidiocese. Em 2002, foi eleito presidente da Regional Nordeste II (Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Ele ficou no cargo por 3 anos, já que em 2005 foi nomeado pelo papa Bento XVI como bispo da diocese de Sobral (Ceará).
Mas o período fora de Pernambuco foi curto: 4 anos depois (2009) foi nomeado arcebispo de Olinda e Recife. Voltaria a ser eleito presidente da Regional Nordeste II da CNBB em 2014, ocupando o cargo até 2020. Está à frente da AOR há 14 anos (2009-2022), período inferior aos seus dois antecessores. Dom Hélder Câmara foi arcebispo por 21 anos (1964-85), seguido por 25 anos de Dom José Cardoso Sobrinho (1985-2009).
Arquidiocese de Olinda e Recife
Criada em 1614, a Prelazia de Pernambuco integrava a Diocese de São Salvador da Bahia. Seis décadas depois, em 1676, foi elevada a Diocese de Olinda. E 130 anos depois, em 1910, elevada a Arquidiocese e Sede Metropolitana e, em 1918, denominada Arquidiocese de Olinda e Recife. Desde os anos 1600 foram 31 bispos (sendo os 8 últimos Arcebispos).
O Brasil possui 45 arquidioceses. A Arquidiocese de Olinda e Recife (AOR) possui 9 dioceses nas regiões Agreste e Sertão, além de 20 paróquias na região metropolitana do Recife e Zona da Mata do estado. A arquidiocese tem, no momento, cinco bispos. Além de Dom Saburido, há o bispo auxiliar Dom Limacêdo, o vigário-geral Dom Luís Gonzaga, o bispo emérito Dom Frei Severino e o arcebispo emérito (aposentado em 2008) Dom José Cardoso Sobrinho.
Os arcebispos ocupam o 6º lugar mais elevado na hierarquia da Igreja Católica. Mas muitos títulos hoje são honoríficos ou se aplicam apenas a representações católicas de regiões específicas do mundo, de modo que, na prática, os arcebispos encontram-se em 3º na hierarquia, abaixo apenas dos cardeais e do papa.
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Edição: Elen Carvalho