Alguém deve ter caluniado Josef K., porque foi preso uma manhã, sem que ele houvesse feito alguma coisa de mal.
O início do romance kafkiano é sempre interpretado como um absurdo, um exagero figurativo a fim de alcançar um impacto estético e fazer o leitor refletir sobre as perigosas engrenagens do sistema de justiça. No entanto, foi dessa mesma forma que José Domingos Leitão, em sua casa, na cidade de Ilha Grande, interior do Piauí, surpreendido pela polícia civil do DF, acordou. Do lado de cá da linha do equador, o absurdo ganha robustez, concretude e não permite a reflexão nem o respiro uma vez que é estampado diante de nós, todos os dias.
José Domingos, homem negro e nordestino, é mais um “caso isolado” de erro das tecnologias de reconhecimento facial que vem se somando mês a mês em diversas cidades do país.
Em 2021, no Recife, o debate sobre a tecnologia de Reconhecimento Facial se intensificou. A Prefeitura anunciou que seriam instalados 108 relógios digitais pela cidade com diversas funcionalidades, entre elas a de reconhecimento facial. A tecnologia, segundo o anúncio, ganharia espaço no Recife por meio de uma parceria público-privada.
A possibilidade de instalação de câmeras com essa tecnologia foi vista com apreensão por ativistas dos Direitos Humanos, movimentos sociais e profissionais que trabalham com tecnologia, direito digital e proteção de dados. Com razão, haja vista os resultados negativos gerados com a implementação da tecnologia em questão em diferentes lugares onde foi aplicada, sobretudo para a população negra, travesti e transexual.
Em resposta à movimentação social, a Prefeitura realizou Consulta Pública e Audiência Pública sobre a realização da Parceria público privada por meio das quais diversos pontos foram levantados pela sociedade civil, em especial a proposta de banimento da tecnologia de reconhecimento facial.
Entretanto, sem ouvir efetivamente a população, reforçando a lógica de uma escuta meramente formal, num processo realizado às pressas e pouco transparente, a Prefeitura do Recife se recusa a voltar atrás na instalação das câmeras de reconhecimento facial. O que ensejou a articulação entre diversas organizações e coletivos, entre eles a ANEPE, em torno da campanha “Sem Câmera na Minha Cara”, que denuncia os abusos e perigos da implementação dessa tecnologia e visa pressionar os atores do poder executivo municipal.
Para abordar um tema como esse, tão novo, cujo debate ainda permanece encastelado entre os acadêmicos, é fundamental traduzi-lo a partir dos seus impactos na população mais vulnerabilizada por essa tecnologia.
Assim, segundo o levantamento produzido pelo Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege) foram mapeados, apenas na Cidade do Rio de Janeiro, 58 erros de reconhecimento, num período de 10 meses, sendo 80% dessas vítimas, pessoas negras.
No mesmo sentido, a Rede de Observatórios da Segurança monitorou os casos de prisões e abordagem com o uso de reconhecimento facial em todo país e chegou a um resultado alarmante: 90,5% das prisões foram de pessoas negras.
Não é por acaso que os dados demonstram a concentração de erros das câmeras de reconhecimento facial sobre a população negra, embora o senso comum entenda as decisões automatizadas como neutras e confiáveis, deve-se atentar para a realidade de que a tecnologia não é neutra.
Em verdade, por trás dos códigos que programam a inteligência artificial que reconhece e criminaliza cidadãos, existe uma sociedade ainda pautada no racismo. O pensamento supremacista branco que associa a brancura ao belo, puro, rico e inocente também age na degradação da pessoa negra e no sequestro das imagens produzidas sobre nós, fazendo o povo negro ser associado à subalternidade, à pobreza ao crime e à violência.
É sobre esse panorama que as câmeras de reconhecimento facial são desenvolvidas e “treinadas”, foi nesse contexto que uma foto do ator norte-americano Michael B. Jordan foi utilizada para reconhecimento fotográfico de suspeitos no Ceará.
Estamos vivenciando uma reatualização digitalizada, uma versão 2.0 do racismo diário praticado pelas polícias quando abordam nossos jovens por estarem em “atitude suspeita”, leia-se: ser negro.
A tecnologia, por si só, jamais será a solução para os desafios da segurança pública. É preciso ter em mente a fala de Abdias Nascimento: “A tecnologia deve existir como sustentáculo para a consagração do homem e da mulher em sua condição de ser”, longe da “atual tendência de escravizar o ser humano”.
Na cidade berço de Gilberto Freyre cujo pensamento naturalizou a histórica violência sofrida pelo povo negro, a mesma cidade na qual polícia, em 2020, foi responsável pela morte de 113 pessoas - todas elas negras. Insistir numa solução mágica para o problema da segurança, através da implementação da tecnologia de reconhecimento facial, sem considerar o racismo estrutural que fundamenta toda a política de segurança pública local, é apenas puro deslumbramento e negação (do racismo). E, ao que parece, a Prefeitura do Recife está afundada até o pescoço nesse fetiche digital.
*José Vitor e Patrícia Teodósio são advogados e integrantes da Articulação Negra de Pernambuco.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Elen Carvalho