Grande parte das atividades humanas requer o uso da eletricidade para que venham a ser realizadas, sejam estas tarefas simples como esquentar água, trabalhar em escritórios, realizar exercícios físicos e até mesmo nos cuidados com nossos animais de estimação. A energia elétrica é insumo fundamental para a vida em sociedade, seja no campo, nos centros urbanos, em aldeias indígenas ou quilombolas. O contexto apresentado, por si só, justifica de maneira irrefutável que devem permanecer sob a alçada do Estado o planejamento de uso e expansão do fornecimento de energia elétrica. No entanto, o governo federal pensa bem diferente esta questão, e essa semana resolveu subsidiar os preços dos combustíveis utilizando o dinheiro arrecadado com a privatização da Eletrobras, medida eleitoreira com lastimáveis efeitos de longo prazo.
Para que se possa entender o que está sendo proposto, é importante compreender o Setor Elétrico brasileiro em sua história e particularidades. As primeiras redes elétricas de distribuição e iluminação pública do nosso país foram concebidas pela iniciativa privada e alguns municípios abastados, em alguns casos empresas internacionais. O ponto de inflexão para o repasse das responsabilidades à esfera pública se deu no momento em que esses atores careciam de potencial de investimento para suprir o recém-criado parque industrial brasileiro, entre as décadas de 1950 e 1960. Assim, coube à União desenvolver a matriz energética e construir as grandes hidrelétricas que hoje compõem a Eletrobras, tendo o projeto utilizado o potencial hidrelétrico dos rios do país para a geração de energia. Para além de gerar e transmitir energia, a Eletrobrás desenvolve vários projetos, sendo o mais conhecido deles o Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica – PROCEL, que se dedica a incentivar o uso consciente da eletricidade, como também etiquetar equipamentos e prédios que usem a energia elétrica de forma eficiente. Após toda a estrutura levantada com dinheiro do povo brasileiro, o sistema elétrico passa por um período de baixos investimentos entre os anos 80 e 90, justamente o período de consolidação do pensamento neoliberal, o que leva a privatização das distribuidoras de energia, como também a criação da Agencia Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, visando regular as relações entre consumidores e fornecedores, e arbitrar sobre os preços das tarifas de energia elétrica.
A onda de privatizações que o governo FHC (PSDB) promoveu alterou a estrutura do setor elétrico brasileiro, especialmente no segmento de distribuição. Mais da metade do mercado nacional de distribuição de energia elétrica foi entregue ao controle de grupos privados. Não por acaso, no penúltimo ano do governo FHC, em 2001, o Brasil é acometido pela maior crise elétrica de sua História, fato conhecido como Apagão, que levou o país a um rigoroso programa de racionamento de energia.
Após o episódio, houve nova abertura do mercado de energia, possibilitando que a iniciativa privada voltasse a se interessar pelo negócio e construir diversas usinas, sejam elas termelétricas ou pequenas centrais hidrelétricas, constituindo o que hoje perfaz a matriz elétrica nacional. Ao Estado cabe fornecer pouco mais de 35% da eletricidade consumida no país, onde se ressalta, ainda, que pouco mais da metade das linhas de transmissão que hoje formam o Sistema Interligado Nacional – SIN também estão sob a responsabilidade da iniciativa privada. Dado o contexto, uma indagação: sendo dois terços da geração e praticamente toda a transmissão e distribuição de energia elétrica privadas, por que ainda assim querem tanto privatizar a Eletrobras? A justificativa apresentada é que esta retome a capacidade de investimento, coisa que nunca aconteceu em oportunidade passadas. Até mesmo no momento da “abertura do mercado”, no início dos anos 2000, o marco regulatório garantiu que as usinas térmicas fossem remuneradas mesmo sem ter a necessidade de produzir energia, sendo a união uma espécie garantidora do retorno no investimento. Outros argumentos arrolados apontam déficits no lucro líquido, falta de capacidade gerencial e até mesmo a pachorra do “combate a corrupção. O fato é que a Eletrobras operou por curtos períodos no prejuízo, mas vem obtendo altas taxas de lucro nos últimos anos e conta com os melhores profissionais do setor elétrico nacional, restando somente o componente ideológico como fato preponderante para que aconteça a privatização.
A Eletrobras é a maior empresa de energia elétrica da América Latina, controla mais de um terço da capacidade geradora de energia do país e quase metade das linhas de transmissão. Trata-se portanto de uma empresa estratégica para o desenvolvimento nacional. A privatização dessa empresa torna-se ainda mais absurda quando comparados os valores de investimento com o valor da venda. O governo Bolsonaro abriu mão do controle da Eletrobrás pelo valor de 33,7 bilhões de reais. Mas somente entre 2010 e 2016 o governo federal investiu 97 bilhões de reais na empresa, valor 3 vezes superior ao de sua venda.
O argumento de que a empresa daria prejuízo cai totalmente por terra quando se observa que somente no período entre 2018 e 2021 a Eletrobras obteve lucro de cerca 36 bilhões de reais. Ou seja, em apenas quatro anos a Eletrobras obteve um lucro superior ao valor pelo qual o governo Bolsonaro resolveu entregar o controle da empresa.
Entregar a Eletrobras à iniciativa privada é um duplo afronte à soberania nacional, uma vez que põe nas mãos de terceiros o juízo sobre a operação e expansão do sistema elétrico, da mesma forma que retira do estado a gestão dos nossos rios, assim como acontece na tentativa de privatização das companhias de abastecimento de água e saneamento, que já operam em vários dos estados a partir do regime de parcerias público-privadas. A catástrofe é ainda mais urgente quando se conhece as experiências de concessão de monopólios privados de serviço público pelo mundo. Em vários países da Europa e nos EUA já há uma grande previsão de reestatização desses serviços, haja vista prestarem serviços de péssima qualidade sob uma tarifa que castiga o bolso do trabalhador. Água e energia são insumos essenciais que devem ser pensados a partir das demandas de desenvolvimento econômico e social da população. O projeto de destruição nacional de Bolsonaro e Paulo Guedes, em conluio com operadores do mercado, quer a todo custo retirar dos estados e da união a gestão das águas brasileiras, expondo nossos mananciais a voracidade por lucros cada vez mais altos dos investidores, principalmente internacionais, que na maioria das vezes sequer possuem experiência nesses tipos de negócios. Que a nossa sociedade consiga reagir a esse absurdo, resgatando o estado brasileiro enquanto ente competente para a concepção, planejamento e expansão do setor elétrico, incluindo na agenda a diversificação da matriz para a inclusão ainda mais forte de fontes renováveis, respeitando as comunidades circunvizinhas às usinas produtoras e incentivando cada vez mais o uso consciente da energia elétrica.
*Tiago Paraiba é militante do movimento negro e presidente do PSOL Pernambuco. Rodrigo Cirilo é Engenheiro Eletricista, professor universitário, músico e tesoureiro do PSOL Olinda.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Elen Carvalho