Marca característica do governo Bolsonaro (PL), a ascensão das comunidades terapêuticas (CTs) para pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas também achou espaço na gestão da Prefeitura do Recife, sob comando do PSB desde 2013. Ao passo que se prolonga o processo de sucateamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que engloba os serviços de Saúde Mental do Serviço Universal de Saúde (SUS), o poder municipal investe cada vez mais nas CTs.
Muitas vezes de base fundamentalista religiosa, essas organizações operam com um modelo de tratamento que está aquém do progresso estabelecido com a Lei da Reforma Psiquiátrica de 2001, conhecida como Lei Antimanicomial. As CTs também são responsáveis por uma série de violações aos direitos humanos, segundo o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas 2017, produzido por entidades como Conselho Federal de Psicologia e Ministério Público Federal.
Documentos exclusivos obtidos pela reportagem do Brasil de Fato Pernambuco via Lei de Acesso à Informação mostram que a administração da capital pernambucana investiu R$ 1.522.840 para acolher 1.036 pessoas em duas comunidades terapêuticas em outras cidades do Estado ao longo dos últimos seis anos. Isso fora o edital publicado no dia 26 de março deste ano, para destinar R$ 2.448.000 a até nove organizações no Grande Recife para a abertura de mais 150 vagas. Juntas, as duas licitações somam R$ 3.970.840.
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Para o psicólogo Jorge Luiz da Silva, os números mostram que o interesse da prefeitura não é no cuidado com a população em vulnerabilidade pelo uso problemático de drogas.
"Isso está muito mais dentro do jogo da política. Cenário [comum] nos três níveis de governo, no Recife também temos uma bancada evangélica na Câmara dos Vereadores bem expressiva. Quando essa gestão assume, já tem um compromisso com essa bancada. Lembro muito que na posse do prefeito atual [João Campos], circulou um vídeo dele com líderes religiosos firmando compromisso com o investimento nessas instituições. E de fato é isso que tem acontecido", afirma.
Enquanto isso, a cidade não abre nenhuma vaga em Unidades de Acolhimento (UAs) há pelo menos sete anos. Com apenas três UAs para adultos, a rede não expandiu e conserva os mesmos 45 leitos - 15 em cada uma, com exceção dos anos de 2020 e 2021, quando o número de camas por equipamento caiu para 8 em razão da pandemia. São realizados em média 98 atendimentos por ano nos três espaços, para atender toda a demanda dos cinco Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD).
Traçando um paralelo, as UAs são os dispositivos da RAPS que prestam o serviço de caráter residencial e transitório que as comunidades terapêuticas se propõem a realizar, com a diferença de terem o tratamento pautado pelo que rege a Política Nacional de Saúde Mental. Enquanto nas CTs os indivíduos são asilados, tirados de seu convívio familiar e, por vezes, submetidos a violências, busca-se, nas Unidades de Acolhimento, tratar o usuário dentro do seu território, visando sua autonomia.
Jorge Luiz atua no Caps AD Espaço Travessia René Ribeiro, no Recife, e constata de perto que o número de vagas nas UAs não é suficiente para abarcar a população que precisa desse serviço. “Obviamente, não dá conta do jeito que a gente gostaria que desse. A gente tem muita dificuldade, por vezes, de encaminhar um usuário para UA. Ele fica dois, três meses na fila esperando, porque a realidade é essa. No caso das mulheres, é um pouco mais fácil, porque são um público menor. Mas, no caso dos homens, que têm essa necessidade mais recorrente, a quantidade de vagas é insuficiente”, revela.
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Tanto a Prefeitura do Recife como o Governo de Pernambuco poderiam destinar verba própria aos orçamentos de implantação e custeio das UAs, mas todo o recurso aplicado até hoje é de origem federal. As duas primeiras UAs do Recife, Jandira Masur (para o público feminino) e Celeste Aida (público masculino), foram implantadas em 2014, com R$ 70 mil do Ministério da Saúde (MS) para cada. Em 2015, a prefeitura abriu a UA Antonio Nery, também para homens, com o mesmo valor de aporte. As unidades têm médias anuais de acolhimento de 35, 27 e 36 pessoas, respectivamente. Não há sequer uma Unidade de Acolhimento Infantojuvenil na capital.
O psicólogo avalia que o ideal seria que houvesse pelo menos uma Unidade de Acolhimento para cada CAPS AD. “A gente vê que isso não acontece. As UAs são de 2014 e 2015, e desde então não se avançou nada. São bem maiores os recursos destinados às vagas em comunidades terapêuticas. Um recurso que poderia estar sendo investido na ampliação dos serviços da RAPS, pensando na ampliação dos CAPS 24h ou abertura de novas UAs”, critica. Só um CAPS AD funciona 24 horas no Recife, o Centro de Prevenção Tratamento e Reabilitação de Alcolismo.
A Secretaria de Saúde (Sesau) do Recife não tem convênio com comunidades terapêuticas. Na verdade, a verba é direcionada às organizações por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude e Política Sobre Drogas. O primeiro edital em vigor, de 2015, contempla a Oásis da Liberdade, na zona rural do município de Igarassu, Grande Recife, e a São Miguel Arcanjo, em Brejo da Madre de Deus, no Agreste de Pernambuco. A primeira recebeu, desde 2016, R$ 814 mil; e a segunda, no mesmo período, R$ 708.840.
Em 2019, o movimento da luta antimanicomial pressionou e conseguiu barrar na Assembleia Legislativa de Pernambuco um projeto de lei que buscava vincular as comunidades terapêuticas à Rede de Atenção Psicossocial do SUS, para que pudessem receber aportes das pastas de Saúde. A proposta surgiu das mãos de um parlamentar pentecostal que é proprietário da rede de comunidades terapêuticas Saravida: o deputado estadual Pastor Cleiton Collins (PP). Na Câmara do Recife, sua esposa Michele Collins (PP), que também é dona da organização, é uma dos vereadores que defendem os interesses das CTs no plenário.
O Brasil de Fato Pernambuco procurou Prefeitura do Recife para perguntar qual a explicação para o investimento milionário nas CTs - modelo de organização que está em desacordo com a Política Nacional de Saúde Mental e com os avanços da Lei da Reforma Psiquiátrica - e por que não houve nenhum destinação de verba às UAs. Até a última atualização desta matéria, não houve resposta. O espaço está aberto.
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Quando teve um surto desencadeado pelo uso abusivo de drogas, 15 anos atrás, José Nilton da Silva Júnior foi levado por familiares para um hospital psiquiátrico do Recife. À época, com o país ainda vivendo o início da transição da reforma psiquiátrica, Nilton relembra que chegou a ser submetido ao uso da camisa de força e à terapia eletroconvulsiva (eletrochoque) antes de ser encaminhado para receber o tratamento nos serviços descentralizados da RAPS.
“Existem duas políticas, a que aprisiona e outra que liberta. É uma disruptura totalmente libertária. Dentro do CAPS, há um tratamento a partir da liberdade, em que o usuário acorda o seu plano terapêutico singular com seu técnico de referência. No contexto do CAPS, existe equipe multidisciplinar, onde tem psicólogo, assistente social, enfermeiro, psiquiatra, médico clínico”, relata.
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É isso o que estruturam a Lei Antimanicomial e a portaria que consolidou a criação da RAPS em 2011: as diretrizes que garantem à pessoa em sofrimento psíquico ser tratada preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental, em detrimento das práticas asilares, e com seus direitos assegurados.
Nesse processo de construção de autonomia dentro do próprio tratamento, Nilton virou um militante da luta antimanicomial. Ele veio a se tornar o primeiro usuário da RAPS do Brasil a presidir um Conselho de Políticas sobre Álcool e outras Drogas.
Atualmente, aos 41 anos, é educador social e redutor de danos, e, entre as muitas cadeiras que ocupa, atua como inspetor de comunidades terapêuticas no Conselho Federal de Psicologia em Pernambuco e no Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas de Jaboatão dos Guararapes.
Tendo vivido na pele a experiência do asilamento institucional, Nilton vê hoje a mesma lógica manicomial se repetir nas CTs. “Passa-se o tempo, muda-se a nomenclatura de manicômio para comunidades terapêuticas, mas de comunidades terapêuticas não têm nada. O que tem aí é um viés totalmente religioso, onde acumulam-se populações em situação de rua e usuários de álcool e outras drogas para barganhar votos”, critica.
“Existem várias famílias aí fazendo trampolim político com coadoecimento dessas pessoas pelo simples fato de terem esses pseudo espaços de cuidado. O que a gente está vivendo hoje é a volta desse modelo asilar, higienista, arcaico e retrógrado do período medieval, e com apoio do governo federal”, reforça.
Em suas inspeções às CTs em Pernambuco, Nilton testemunhou violações aos direitos humanos de toda ordem. “Como por exemplo, vi encherem um pilão cheio de ansiolítico e psicotrópico sendo botado no funil [na boca] do cara amarrado. Presenciei o quarto da clausura - uma cela fria, escondida, onde não se vê luz e onde a pessoa é castigada. Não presenciei, mas [em vistoria] foi detectado um estupro após exame de corpo de delito”, cita.
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Segundo ele, essa é a realidade que predomina entre as organizações que visitou. “Diante de todas as atrocidades que a gente viu, em maior parte as CTs não prestam. A maioria tem viés de segregar patologicamente a vida dos indivíduos e ganhar votos”, declara.
Dito isso, Nilton pondera que há instituições que não executam práticas de tortura. Mesmo assim, possuem um modelo de tratamento que ele questiona. “Existem comunidades terapêuticas que fazem um trabalho que, a partir do entendimento deles, não vêm a violar tanto quanto a maioria. Cumprem o trabalho de mediador. Mas não é correto porque não existe equipe multidisciplinar”, coloca.
A Lei Antimanicomial é categórica ao dizer que as internações só são permitidas caso ofereçam assistência integral à pessoa com transtornos mentais, “incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros”.
Nilton também aponta para o cunho religioso cristão - seja católico ou evangélico - das entidades. Ele relata ter visto uma pessoa ter um surto em abstinência de álcool, convulsionar, e os trabalhadores da CT intervirem com uma oração para supostamente exorcizar o demônio que estaria possuindo o usuário. “É a negação total da ciência. Muito triste ver isso no século 21”, expõe.
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O conselheiro denuncia ainda outras anomalias praticadas por algumas instituições: “Não podem entrar pessoas com orientação diferente de heterossexual. Existe laborterapia (terapia pelo trabalho) em que fazem cavar uma cova e dizem: ‘se não parar de usar [droga], vai acabar aí’. Além de ganharem dinheiro do governo, eles põem os usuários nos ônibus para vender mercadoria. É um meio de vida, e usam o nome de Deus para ludibriar todo esse recorte.”
Enquanto usuário e militante, para Nilton é difícil assistir ao progressivo desinvestimento na RAPS. Mas ele diz ter fé de que as coisas vão mudar. “A gente luta não é apenas contra a estrutura do manicômio. É contra as práticas manicomiais. A gente luta para vencer os muros da opressão, para emancipar o usuário e garantir seus espaços de controle social”, defende.
Edição: Elen Carvalho