Pernambuco

ACESSO A DIREITOS

Aborto legal: Ao retrocesso, pernambucanas respondem com propostas parlamentares e manifestação

Mobilizações acontecem em momento em que o direito já conquistado ao aborto legal está sendo posto em risco

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Frente Pernambuco Pela Legalização e Descriminação do Aborto realizou ato na terça-feira (28) - Divulgação

Tiveram ampla repercussão os casos de estupro de uma menina de 11 anos, em Santa Catarina, e de uma atriz paulista de 21 anos, assim como a publicação de manual do Ministério da Saúde (MS) que diz que “não existe aborto legal” no Brasil. As notícias suscitaram mobilização nas ruas e nos parlamentos de Pernambuco. Nessa semana, dois requerimentos foram protocolados na Câmara do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) relativos ao tema. Convocadas pelo movimento feminista, militantes foram às ruas em Ato em Defesa do Aborto Legal nessa terça-feira (28). 

Nas escadarias do Tribunal de Justiça de Pernambuco, no bairro de Santo Antônio, centro do Recife, foi erguida uma faixa com os dizeres: "Nenhuma pessoa deve ser presa, maltratada ou humilhada por ter feito aborto". A mobilização, chamada pela Frente Pernambuco Pela Legalização e Descriminação do Aborto, aconteceu no mesmo dia em que ocorreu a audiência pública do MS para discutir o “Manual para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento”.

Na segunda-feira (29), a vereadora Dani Portela (PSOL) apresentou à mesa diretora da Câmara um requerimento dirigido à Secretaria de Saúde do Recife, cobrando a garantia dos serviços de abortamento legal.

Leia também: Audiência do ministério da Saúde debate manual sobre aborto, rejeitado por especialistas

O pedido é para que a prefeitura verifique se estão sendo cumpridos todos os atendimentos nas unidades de saúde com atendimento especializado em casos de violência sexual e em interrupção de gravidez prevista em lei no Recife. “O Mapa do Aborto Legal mostra que, com a covid-19, em 2020, só 55% dos hospitais que faziam esse procedimento continuaram realizando”, explica a vereadora.

Em segundo plano, o requerimento também reforça a necessidade de que se amplie a rede de unidades de saúde que faz o abortamento legal. No Recife, há seis com esses serviços especializados. Veja no fim do texto a lista. “Existe uma ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental] que diz que qualquer hospital que ofereça o serviço de Ginecologia e Obstetricia e seja equipado com uma equipe treinada pode realizar [o aborto]. Muitos dos hospitais se negam a fazer o procedimento, como foi o caso daquela menina [em Santa Catarina]. Muitos profissionais se negam a fazer”, expõe.

Ela lembra que o principal público que tenta acessar esse direito são vítimas de violência sexual. “Em 2019, a gente chegou a mais de 66 mil estupros no Brasil em um ano - e os casos registrados nas delegacias são subnotificados. Muitas mulheres, crianças e meninas não vão até a fase de ir numa delegacia e abrir um inquérito policial. Dos casos notificados, 85% são com mulheres e 57,9% são vítimas com menos de 13 anos de idade. A cada 15 minutos, uma criança de até 13 anos é estuprada. Essa é a realidade que a gente vive hoje”, diz.


Manifestação aconteceu em frente ao Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). / Rebeca Martins 

O requerimento foi aprovado, mas não sem discussão. Falando no plenário contra o projeto, a vereadora Michele Collins (PP), da bancada evangélica, chegou a mentir ao dizer que a menina não teria sido estuprada, porque o "pai" foi um adolescente de 13 anos. A afirmação não é verdadeira, já que o Código Penal qualifica como "estupro de vulnerável" qualquer relação carnal ou ato libidinoso com menores de 14 anos. 

Dani Portela classificou as discussões como “inócuas e descoladas da realidade”. “O que estou pedindo é um legislativo, uma Câmara para criar leis e fiscalizar. A gente pede para que se aplique [o abortamento legal] nos três casos previstos em lei. Isso não deveria nem ser discutido por lideranças religiosas, é uma decisão da gestante ou do responsável pela criança quando ela é de menor”, defende.

Nessa quarta-feira (29), foi votado e aprovado na Alepe um requerimento do mandato coletivo Juntas (PSOL) que indica ao Governo de Pernambuco que seja instituído um canal disque-denúncia específico para casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. O meio serviria também para informar e orientar a população sobre o assunto e sobre o acesso a direitos. A proposta teria sido construída juntamente com movimentos feministas.

Leia também: A juíza errou: o que diz a lei brasileira sobre aborto, estupro e proteção de crianças

A codeputada Carol Vergolino conta que, como membra da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia, tem feito ao longo dos anos escutas com famílias de crianças grávidas que não sabem a quem recorrer. “As secretarias de Saúde e coordenadorias da Mulher não estão preparadas para indicar a possibilidade do aborto a que todas essas crianças têm direito. Elas gestam e parem, viram mães, quando teriam direito ao aborto legal e seguro”, aponta.

Ela classifica que o País vive uma “pandemia de crianças sendo mães”. “Em Pernambuco, nos últimos 10 anos, de 2010 a 2019, foram mais de 14.500 meninas virando mãe. Isso dá quase quatro meninas se tornando mães por dia no Estado.” 

Segundo a parlamentar, há uma dificuldade de se acessar o abortamento legal em Pernambuco. “São muitos os entraves. São poucos os espaços, agentes de saúde e enfermeiras que encaminham essas crianças para a possibilidade de aborto. Normalmente, são encaminhadas para o pré-natal. Elas precisam ter a possibilidade de realizar esse aborto de forma segura e tranquila”, pontua.


Mulheres e outras pessoas com útero esbarram em entraves durante todo o processo para acessar o procedimento que a legislação deveria garantir / Pixabay

A advogada Maju Leonel, professora de Direito Penal e membra da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), confirma que a negativa ao abortamento legal é uma situação comum no Brasil. “O que acontece em muitos locais é que, quando a pessoa chega para fazer aborto, há uma dificuldade e descredenciamento da vítima. Questionam: ‘certo, então por que não fez Boletim de Ocorrência (BO)?’. Quando uma pessoa é vitima de um estupro e estupro de vulnerável, ela não precisa de um BO, por exemplo, para fazer aborto. O hospital do SUS precisa disponibilizar cirurgia de abortamento e a vítima não precisa de comunicação judicial [para isso]”, afirma.

Quem tem direito hoje ao abortamento legal?

Embora seja questionado por segmentos conservadores da sociedade e da política, o abortamento é um direito já garantido, resultado da luta dos movimentos feminista e dos direitos humanos. O Código Penal e a ADPF 54 do Supremo Tribunal Federal estabelecem três casos em que a interrupção da gravidez é prevista em lei: risco de morte da mãe, anencefalia do feto e estupro.

Ainda que a tipificação do crime de estupro de vulnerável seja diferente da do estupro, por analogia, a permissão se aplica para ambas as situações, explica Maju Leonel.

Leia também: Crianças de até 14 anos são maiores vítimas de estupro no Brasil, mostra Anuário de Segurança

Qualquer conjunção carnal ou ato libidinoso que envolva crianças e adolescentes de até 14 anos ou pessoas com enfermidade ou deficiência mental é considerado estupro de vulnerável. “Essas pessoas não têm poder de consentimento. Uma menina expontaneamente querer beijar outra pessoa, isso vai ser considerado estupro de vulnerável”, detalha.

O crime se aplica também para quando a violência é contra uma pessoa em situação de embriaguez, voluntária ou involuntária, por álcool ou outras drogas.

Com a ampliação do debate sobre direitos sexuais e reprodutivos, outras condutas também passaram a ser entendidas como passíveis de enquadramento no crime de estupro, como o ato de retirar a camisinha sem o consentimento da parceira ou parceiro.

“O que configura o crime de estupro é o constrangimento para ter tais atos. Antes se compreendia que isso se resumia a uma violência física ou grave ameaça direta. Mas, quando se tira a camisinha, você deixa de ter aquele consentimento, que não é pleno. Hoje, na Justiça, isso vem sendo compreendido de maneira abrangente, porque a doutrina vem se adequando a uma advocacia mais filiada aos direitos das mulheres”, afirma. 


Para a advogada Maju Leonel, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE, tentativas de retrocesso estão ligados ao cenário conservador que atravessa o País / Cortesia

Estrutura social e sistema judicial precisam ser revistos, diz especialista

Apesar disso, as manchetes que estamparam os noticiários nas últimas semanas deixam evidente que não houve mudança real no sistema judiciário, avalia a advogada. “Ele continua sendo feito por homens para homens. [No caso da menina de 11 anos de Santa Catarina], embora quem estivesse ali na linha de frente fossem mulheres, elas apresentam valores extremamente machistas”, aponta Maju Leonel.   

A especialista critica ainda o manual do Ministério da Saúde que, entre as mentiras que perpreta, diz que “todo aborto é um crime”. O documento ainda sugere que a vítima passe por uma investigação criminal para comprovar “situações de excludente de ilicitudes”. “Colocá-la em todos esses espaços do judiciário e da polícia, ainda contra vontade dela, para que ela tenha um direito que já foi garantido por lei, isso faz parte do cenário conservador que a gente está tendo”, comenta.

Em meio aos retrocessos ensejados pelo conservadorismo, a especialista pontua que os homens são majoritariamente quem toma as decisões que dizem respeito aos corpos femininos. O manual em questão, por exemplo, foi escrito pelo secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Raphael Câmara. “São legisladores homens, são as mesmas pessoas que não querem que a gente discuta sobre educação sexual nas escolas. Há um contrassenso quando se está falando nesse tema (aborto).”

Leia também: Damares reserva em 2022 a menor verba para o combate à violência contra mulher em quatro anos

Para Maju, a educação sexual nas escolas é uma política pública urgente para reduzir os índices de gravidez na infância. “É para que crianças entendam que o corpo é delas, o que pode ser tocado, quem pode tocar, que quando há um incômodo elas precisam falar com um adulto. Os adultos precisam dar espaço de acolhimento; quando o toque [na criança] incomoda, deve ser dito, e o que é dito deve ser acolhido. Seria um grande passo para começar a diminuir o trauma de tantas crianças que sofrem violência em suas casas”, diz.

Nesse processo, seria também necessário rever toda a estrutura social. “Para a gente compreender e desmistificar a objetificação dos corpos das mulheres, é preciso repensar a docilização, as formas que somos instruídas enquanto papéis definidos dentro desse contexto social. O papel de virilidade e masculinidade tóxica do homem lá para frente reverbera no homem agressor e estuprador. E somos as mulheres que somos estupradas e mortas no fim as contas”, contextualiza.

A advogada relembra o corte de verbas destinadas ao combate à violência contra mulher. Essas políticas públicas contavam, no ano passado, com um orçamento de R$ 132,5 milhões no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Neste ano, a pasta direcionou apenas R$ 43,2 milhões para este fim, representando uma redução de 68% (R$ 89 milhões). “Isso é mais um reflexo de que esse governo federal é contra as mulheres”, afirma.

Saiba onde há serviços de referência para pessoas em situação de violência e de atenção à interrupção de gravidez em Pernambuco

Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) afirmou que "seguindo as orientações e normas técnica do Ministério da Saúde, a rede Estadual dispõe de serviços de referência para atendimento integral às pessoas em situação de violência sexual, atenção à interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, atendimento ambulatorial às vítimas de violência sexual e serviços para coleta de vestígios".

Recife:

Hospital da Mulher do Recife - Centro de Atenção à Mulher Vítima de Violência Sony Santos (gestão municipal): BR-101, 485, Curado;

Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), conhecido como Maternidade da Encruzilhada (gestão estadual):  Rua Visconde de Mamanguape, s/n, Encruzilhada;

Hospital Agamenon Magalhães - Serviço Wilma Lessa (gestão estadual): Estrada do Arraial, 2723, Casa Amarela;

Policlínica e Maternidade Arnaldo Marques (gestão municipal): Avenida Dois Rios, s/n, Ibura;

Maternidade Professor Bandeira Filho (gestão municipal): Rua Londrina, s/n, Afogados

Maternidade Professor Barros Lima (gestão municipal): Avenida Norte Miguel Arraes de Alencar, 6465, Casa Amarela

Petrolina:

Hospital Dom Malan (gestão estadual): Rua Joaquim Nabuco, s/n, Centro

Serra Talhada:

Hospital Professor Agamenon Magalhães (gestão estadual): Rua Manoel Pereira da Silva, 871, Centro

Edição: Elen Carvalho