Enquanto os movimentos feministas e em defesa do direitos humanos tentam levar adiante o debate sobre descriminalização e legalização do aborto, o caso da menina de 11 anos que foi pressionada pela Justiça a não abortar escancara: ao invés de progredir, o cenário é de retrocesso. A ameaça acompanha a crescente onda conservadora na política - emblematicamente representada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).
Até mesmo o direito já conquistado está em xeque. O exercício pleno do abortamento legal não é uma realidade no Brasil; mulheres e outras pessoas com útero esbarram em entraves durante todo o processo para acessar o procedimento que a legislação deveria garantir. E não é diferente em Pernambuco.
O estado possui oito serviços de referência de atendimento a pessoas em situação de violência ou de atenção à interrupção de gravidez prevista em lei (em casos de risco de morte da mãe, de estupro ou de anencefalia do feto). São seis no Recife e dois no Sertão. Veja a lista no fim do texto. Em 2021, de acordo com a Secretaria Estadual de Saúde (SES), foram feitos 140 abortos legais.
Paralelamente, houve 2.557 ocorrências de estupros em mulheres registradas nas delegacias pernambucanas no ano passado, segundo a Secretaria de Defesa Social (SDS) - número sabidamente subnotificado. Ao fim do tempo que leva para ler este texto, estimado em 16 minutos, duas mulheres terão sido estupradas no Brasil.
Os gargalos para o acesso ao procedimento são muitos: desde profissionais de saúde que não perguntam como ocorreu a gravidez, não informam do direito ao abortamento ou não fazem encaminhamento aos hospitais que oferecem o serviço, à recusa desses de realizar o procedimento por motivos não amparados pela lei.
Diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros da Universidade de Pernambuco (Cisam-UPE) - uma das unidades especializadas no atendimento à mulher vítima de violência na capital -, o médico recifense Olímpio Barbosa Moraes Filho conta que é comum as pacientes não saberem que têm a escolha de terminar a gestação. “Já tive um caso que me chocou muito, de ela saber só na hora do parto que tinha direito ao abortamento”, revela.
Ele defende que haja um melhor treinamento para que se identifique precocemente situações de violência ou doenças pré-existentes e que seja comunicado à paciente suas escolhas, a fim de que ela possa decidir sobre seu corpo e sua vida. “Se o profissional não informar, as pessoas mais vulneráveis e mais pobres não terão o conhecimento de procurar ajuda. Muitas mulheres não sabem o que é estupro, e tentam muitas vezes interromper sozinha aquela gravidez de forma insegura, ou levam a gravidez à frente e fazem um pré-natal com todas as complicações de uma gestação totalmente indesejada, causando dano à saúde delas”, comenta.
Olímpio já estava no comando do Cisam quando a maternidade recebeu, em 2020, a criança capixaba de 10 anos que engravidou após ser estuprada pelo tio. Por conta da sua trajetória profissional, chegou a ser excomungado da Igreja Católica duas vezes: uma em 2006, por participar de uma campanha estadual de Carnaval de distribuição de contraceptivo de emergência, e a segunda em 2008, por fazer um aborto em uma menina de 9 anos, grávida do padastro.
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Em uma sociedade em que impera a moral cristã, o médico pensa que as pessoas se confundem ao equiparar o valor da vida de uma mulher à de um embrião. “A gente tem que trabalhar e considerar que a vida da mulher tem que ser valorizada mais que a vida do embrião. Muitas vezes morrem mulheres, e a elas não foi dado o direito de escolher. E isso é doloroso”, lamenta.
Além de professor da UPE, Olímpio é um dos diretores da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e se posiciona a favor da descriminalização e legalização do aborto, classificando-o como uma questão de saúde pública. “Só existem duas maneiras de enfrentar o problema do abortamento: tratando com ciência ou com negacionismo, ódio e violência - criminalizando”.
O abortamento existe no Brasil. É a ilegalidade que mata ou muitas vezes deixa sequelas graves - que acontece na população pobre. As ricas abortam e não complicam, porque têm acesso a medicamentos e assistência no abortamento; mesmo sendo ilegal, é seguro. Na mulher pobre, o abortamento ilegal, na maior parte das vezes, é inseguro. Se as ricas morressem, iria mudar, porque morreriam mulheres de deputados, filhas de quem tem poder.
“Estamos passando pelo pior momento”
O ginecologista e obstetra de 60 anos exerce a medicina desde os 24 e viu o Brasil avançar na assistência à mulher vítima de violência com a estruturação e ampliação do SUS na década de 90. Em 1996, Pernambuco se tornou o primeiro estado fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo a realizar a interrupção da gravidez prevista em lei, com a abertura do serviço Pró-Marias no Cisam, onde Olímpio trabalha desde 1994.
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Em algumas décadas, contudo, aquele rápido crescimento estancou. “O Cisam teve papel muito importante no final do século passado, no treinamento e abertura de serviços no Norte e Nordeste do Brasil através do Ministério da Saúde (MS). Hoje temos em quase todo o Brasil; não sabemos o número exato, mas [em torno] de 40 a 42 serviços com assistência à mulher vítima de violência. Mas, nos últimos 10 anos, a gente percebeu uma maior dificuldade de continuação de abertura de serviços”, aponta.
Ele avalia que o País vive agora o seu pior momento, com a proliferação de “ideias contra a mulher” e de falta de políticas públicas. “Temos um Governo Federal que tenta bloquear esse serviço e obstruir o acesso digno ao abortamento seguro e previsto em lei às mulheres vítimas de violência”, diz.
A não abertura de novos serviços especializados não é uma questão técnica, como pondera o médico. Afinal, não é necessária nenhuma tecnologia avançada para realizar o aborto - na verdade, na maioria dos casos trata-se de uma cirurgia mais simples que uma cesárea. “É apenas ouvir a mulher e fazer o que é correto. Existem os serviços de referência porque a dificuldade de colocar [novos] em funcionamento são os preconceitos, a ignorância”, aponta.
Mesmo havendo os hospitais de referência, todos os hospitais com a especialidade de Ginecologia e Obstetrícia deveriam estar preparados para fazer o aborto legal, conforme entendeu o Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54.
No Portal de Boas Práticas na Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, o Instituto Nacional Fernandes Figueiras (IFF) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) reconhece que muitas unidades não têm capacidade de realizar o procedimento, mas indica que devem ao menos ter um "fluxo muito claro estabelecido".
"Principalmente para atender mulheres que não fizeram a profilaxia e chegam grávidas no serviço de saúde, com dois meses de atraso e a gestação decorrente de violência. Esta mulher tem direito ao acesso à interrupção da gestação e precisa ser acolhida e imediatamente encaminhada em fluxo adequado para um hospital que tenha equipe formada para este atendimento”, diz o texto.
Objeção de consciência: “Obrigação nossa é ser provedor de saúde, não da tortura”
Para além das condições de um serviço de saúde, outras justificativas costumam ser empregadas para não se dar prosseguimento ao abortamento legal. Uma delas é a “objeção de consciência”, termo utilizado no meio da saúde quando um profissional se recusa a fazer um atendimento em razão de crenças ou credos pessoais.
Na visão do médico Olímpio Moraes, o servidor público dessa área não deveria ter direito de usar a objeção de consciência para não tratar vítimas de violência. “Ninguém convocou ninguém para ser médico, enfermeiro, psicólogo ou assistente social. Veio por opção. Somos pagos pelo SUS. Dentro do SUS, a gente segue as regras na ética da medicina e das leis do País. Se estou ganhando dinheiro do Estado para promover saúde, não posso ocupar cargos e funções para desrespeitar esses preceitos. A obrigação nossa é ser de provedor de saúde, não do sofrimento e da tortura”, dispara.
Nossa conduta médica é muito clara: não podemos ter objeção de consciência quando não existe outro médico, quando situação de emergência e urgência, e quando a objeção pode causar dano ao paciente.
Sua crítica é ainda mais contundente a quem é especializado na ginecologia e se nega a interromper uma gestação. “O atendimento à violência, o aborto previsto em lei fazem parte do rol das competências do médico obstetra. Se for uma questão que você não consegue explorar, então vá fazer outra especialidade.”
No último caso da menina de 10 anos, em Santa Catarina, o Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago de Florianópolis se negou a fazer a intervenção com base no tempo de gestação. A criança estava em sua 22ª semana, e o estabelecimento alegou que só realiza o abortamento quando a gravidez está até em sua 20ª semana, condicionando o atendimento à apresentação de uma autorização judicial.
Esse é um argumento que não se ampara na legislação: embora haja uma norma técnica do MS dizendo para que se evite interromper uma gestação após a 22ª semana, o Código Penal não estabelece limite de tempo. “Não é uma ilegalidade. É só uma orientação”, explica Olímpio.
Ministério da Saúde propõe novo manual: "Intenção é matar mulheres”
Não bastasse o sucateamento do SUS e a estagnação na abertura de novos serviços, o acesso ao abortamento legal sofreu uma ofensiva direta com a publicação de manual do Ministério da Saúde de "Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento".
Entre as pontuações refutadas por especialistas, o documento afirma que “não existe aborto legal” e que “todo aborto é um crime”, e ainda sugere que a mulher seja submetida a uma investigação policial para que sejam comprovadas “situações de excludente de ilicitudes”. Para o diretor da Frebasgo, o manual é uma excrescência.
“Uma coisa cheia de informações falsas, mentiras mesmo, para causar dificuldade abortamento previsto em lei. A intenção é matar as mulheres mesmo. Causar danos à mulher. Esse manual é uma coisa tenebrosa, uma vergonha para o Brasil. A gente está passando um momento muito ruim de ações contrárias à ciência por parte da sociedade e de gestores e políticos associados ao negacionismo. Eles têm ódio das crianças, da educação, da imprensa”, afirma Olímpio, complementando ainda que o documento foi elaborado sem participação da sociedade civil ou da classe médica.
Para a advogada Maju Leonel, professora de Direito Penal e membra da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), o manual é mais uma forma de criminalizar mulheres. “É colocar a mulher à prova mais uma vez e revitimizar ela, revitimizar esse estupro.
Colocá-la em todos esses espaços do judiciário e da polícia, ainda contra vontade dela, para que ela tenha um direito que já foi garantido por lei. Isso faz parte do cenário conservador que a gente está tendo”, comenta.
Educação sexual como política pública
Em meio aos retrocessos ensejados pelo conservadorismo, a especialista lembra que os homens são majoritariamente quem tomam as decisões que dizem respeito aos corpos das mulheres. O manual em questão, por exemplo, foi escrito pelo secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Raphael Câmara. “São legisladores homens, são as mesmas pessoas que não querem que a gente discuta sobre educação sexual nas escolas. Há um contrassenso quando se está falando nesse tema (aborto).”
Para Maju, a educação sexual nas escolas é uma política pública urgente para reduzir os índices de gravidez na infância. “É para que crianças entendam que o corpo é delas, o que pode ser tocado, quem pode tocar, que quando há um incômodo elas precisam falar com um adulto. Os adultos precisam dar espaço de acolhimento; quando o toque [na criança] incomoda, deve ser dito, e o que é dito deve ser acolhido. Seria um grande passo para começar a diminuir o trauma de tantas crianças que sofrem violência em suas casas”, pontua.
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Nesse processo, seria também necessário rever toda a estrutura social. “Para a gente compreender e desmistificar a objetificação dos corpos das mulheres, é preciso repensar a docilização, as formas que somos instruídas enquanto papéis definidos dentro desse contexto social. O papel de virilidade e masculinidade tóxica do homem lá para frente reverbera no homem agressor e estuprador. E somos as mulheres que somos estupradas e mortas no fim as contas”, contextualiza.
A advogada relembra o corte de verbas destinadas ao combate à violência contra mulher. Essas políticas públicas contavam, no ano passado, com um orçamento de R$ 132,5 milhões no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Neste ano, a pasta direcionou apenas R$ 43,2 milhões para este fim, representando uma redução de 68% (R$ 89 milhões). “Isso é mais um reflexo de que o governo federal é contra as mulheres”, afirma.
Saiba onde encontrar os serviços de referência para pessoas em situação de violência e de atenção à interrupção de gravidez em Pernambuco
Procurada pela reportagem, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) afirmou que "seguindo as orientações e normas técnica do Ministério da Saúde, a rede Estadual dispõe de serviços de referência para atendimento integral às pessoas em situação de violência sexual, atenção à interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, atendimento ambulatorial às vítimas de violência sexual e serviços para coleta de vestígios".
Recife:
Hospital da Mulher do Recife - Centro de Atenção à Mulher Vítima de Violência Sony Santos (gestão municipal): BR-101, 485, Curado;
Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), conhecido como Maternidade da Encruzilhada (gestão estadual): Rua Visconde de Mamanguape, s/n, Encruzilhada;
Hospital Agamenon Magalhães - Serviço Wilma Lessa (gestão estadual): Estrada do Arraial, 2723, Casa Amarela;
Policlínica e Maternidade Arnaldo Marques (gestão municipal): Avenida Dois Rios, s/n, Ibura;
Maternidade Professor Bandeira Filho (gestão municipal): Rua Londrina, s/n, Afogados
Maternidade Professor Barros Lima (gestão municipal): Avenida Norte Miguel Arraes de Alencar, 6465, Casa Amarela
Petrolina:
Hospital Dom Malan (gestão estadual): Rua Joaquim Nabuco, s/n, Centro
Serra Talhada:
Hospital Professor Agamenon Magalhães (gestão estadual): Rua Manoel Pereira da Silva, 871, Centro
Edição: Elen Carvalho