No Recife, está irregular a aplicação da vacina contra o rotavírus, uma das primeiras previstas para recém-nascidos no Programa Nacional de Imunização (PNI). A cidade tem recebido uma quantidade de doses 30% menor desde o mês passado, sem qualquer esclarecimento por parte das outras instâncias de governo. O Ministério da Saúde (MS) é quem faz a distribuição às secretarias estaduais de Saúde, que por sua vez enviam aos municípios. O resultado do repasse insuficiente tem sido postos de saúde desabastecidos e bebês com o calendário vacinal atrasado na capital pernambucana.
Foi o caso de Mariana, de 4 meses de idade. A imunização contra o rotavírus humano G1P1 (VRH) é aplicada em duas doses: a primeira com 2 meses de vida, e a segunda após um intervalo recomendado de 60 dias.
Mariana foi vacinada com a primeira dose em 29 de abril. Quando chegou a hora de receber a outra, em 28 de junho, sua mãe, a médica Marília Apolinário Batista, de 29 anos, procurou três unidades de saúde do Recife sem sucesso - nas primeiras, foram alegados problemas técnicos, e, na terceira, descobriu que o insumo realmente estava em falta.
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Ela só conseguiu encontrar a vacina em um posto em Piedade, no município vizinho de Jaboatão dos Guararapes, em 8 de julho. "Esse tempo que a gente ficou na peregrinação para encontrar a vacina foi angustiante, com medo de ela não conseguir essa vacina, de ficar descoberta. A gente quer que nossos filhos fiquem protegidos, são bebês, o sistema imunológico imaturo, eles estão expostos a todo tipo de patógenos. A gente sabe que a vacina é a arma que a gente tem para proteger as crianças das doenças", comentou a mãe.
As intercorrências deixaram muito curto o intervalo até a aplicação dos próximos imunizantes. “Normalmente é de 30 dias. Dia 27 [deste mês] ela já tem as vacinas dos 5 meses”. Como profissional de saúde, Marília considera de “extrema importância” o cumprimento dessa agenda. “É totalmente relevante, não só para criança, mas para adulto também.”
Em junho, o Programa Municipal de Imunização (PMI) do Recife tinha a expectativa de receber 4.180 doses da vacina contra o rotavírus, mas foram enviadas apenas 2.960, o que equivale a 70% do necessário para atender a população da capital, informou a Secretaria Municipal de Saúde (Sesau).
Em julho, foram destinadas ainda menos doses: 2.920, ou 69% do necessário. “A Sesau esclarece ainda que não recebeu qualquer esclarecimento do MS em relação à diminuição do envio da vacina contra o rotavírus”, reforçou.
O Ministério da Saúde respondeu ao Brasil de Fato que "não há desabastecimento da vacina no estado de Pernambuco". "Foram enviadas de janeiro a junho 131.000 doses. É importante ressaltar que o quantitativo disponibilizado aos municípios é definido pela Secretaria Estadual de Saúde e o Ministério da Saúde não possui gerência sobre a distribuição", falou, em nota. A reportagem perguntou a quantidade de doses enviadas em maio, para haver comparativo, e aguarda uma retorno.
Responsável por intermediar o repasse do MS aos municípios, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) de Pernambuco afirmou que “as distribuições das vacinas de rotavírus para os municípios estão regulares, de acordo com as cotas enviadas pelo Ministério da Saúde”. “Importante destacar que a operacionalização dos insumos é de responsabilidade dos municípios, que devem adequar suas estratégias conforme o cenário local”, completou.
"Se o planejamento não está sendo bem feito, é descaso", classifica médico especialista
A falta do imunizante pode gerar quadros de saúde complicados provocados pelo rotavírus, afirmou o médico Evônio Campelo, infectologista no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC-UFPE). "Dependendo da faixa etária da criança, é muito grave. Pode levar a diarreia intensa, desorientação, febre. Bastante grave”, comentou. O prejuízo ganha uma dimensão ainda maior quando se pensa famílias que não têm condições de adquirir a vacina pela rede particular.
O especialista considera um problema sério a distribuição insuficiente de doses pelo Ministério da Saúde. “Não pode existir isso, não sei como a gente está regredindo tanto nisso. Não sei se é logística ou falta de insumo, mas, se for logística, isso é descaso. Tudo isso é planejamento, tem que ser feito. Se não está sendo bem feito, é descaso”, expressou.
Isso acontece no momento em que o Brasil vive o nível mais baixo de adesão ao Programa Nacional de Imunização (PNI) em 30 anos. Em 2021, segundo o DataSUS, a cobertura vacinal do rotavírus ficou em 69%, enquanto em 2013 esse nível era de 100%.
“É preocupante, uma coisa que a gente não via na população. O Brasil era exemplo de aderência à vacinação. As pessoas sempre procuravam se vacinar”, lamentou o médico. “Não sei o que está acontecendo. A gente sabe que lá fora existe um movimento antivacina forte, não sei até que ponto isso chegou aqui. A gente viu isso muito com a covid-19. Temos um Governo Federal que é responsável [pela baixa adesão à vacinação] quando não orienta, muito pelo contrário, desorienta e desinforma, e o presidente diz coisas absurdas. Isso é muito danoso”, diz.
O infectologista faz o alerta: se continuar assim, “vão começar a voltar doenças que a gente tinha as condições de prevenir”.
Edição: Vanessa Gonzaga