Uma semana depois de ter covid-19 pela primeira vez, no final de janeiro, o engenheiro de software Henrique Black, 26, já começou a sentir mudanças no funcionamento da mente. O jovem recifense ficou com o discurso confuso e passou a perder a linha de raciocínio e esquecer do que estava falando. “Acho que a parte que mais me incomoda é a falta de foco que vem com essa sensação de perdido. É terrível para a realização de uma atividade”, comenta. Ele precisou lidar com tudo isso logo na primeira semana no novo emprego, no qual trabalha essencialmente com lógica, o que foi um desafio por si só. O que ele não esperava, no entanto, é que os sintomas persistiriam até hoje, seis meses depois.

“Eu me sinto bem triste com isso, porque sempre fui uma pessoa com a memória muito boa. Sempre fui de jogos de raciocínio lógico - palavras-cruzadas, caça-palavras, tangram, teste do Einstein. E eu até senti que depois da covid isso também piorou: me tornei um jogador mais lento, com mais dificuldade de concretizar os jogos", lamenta. No mesmo momento, Henrique se retifica: “isso que eu acabei de fazer. ‘Concretizar os jogos’. Eu quis dizer ‘finalizar’, mas as palavras se misturam muito na minha cabeça." 

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Henrique não é o único que enfrenta sequelas neurológicas em decorrência da covid-19. São comuns os relatos de quem experimenta confusão mental, dificuldade de concentração, perda de memória, névoa cerebral (do inglês brain fog), diminuição do olfato (parosmia) e distorção do paladar após ter um quadro da doença, mesmo que leve. 

As pesquisas científicas traduzem essa realidade em números: um estudo da Universidade de São Paulo, conduzida pelo Hospital das Clínicas com 750 pacientes, mostrou preliminarmente em 2021 que cerca de 70% dos pacientes que tiveram covid-19 continuam com algum tipo de sequela após um ano da alta hospitalar. 

Em seis meses, as sequelas da covid-19 não foram embora para Henrique Black, 26 / Arquivo pessoal

Já outra pesquisa, publicada no mesmo ano pela Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, e realizada com 100 pessoas, revelou que 85% dos pacientes que tiveram sintomas prolongados de covid-19 e não chegaram a ser hospitalizados tiveram quatro ou mais sequelas neurológicas que afetam sua qualidade de vida. 

E por que isso acontece?

O médico Evônio Campelo , infectologista no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC-UFPE), explica que, diferentemente de outros vírus como o H1N1, que acometem somente o trato respiratório, o Sars-CoV-2 atinge ainda outros sistemas do corpo. É por isso que se vê pacientes com comprometimentos cardíacos ou alterações cognitivas.

 “O coronavírus tem afinidade com o sistema nervoso central (SNC). Ele vai ao SNC e não só destrói algumas células, como desorganiza a sua fisiologia. Isso leva ao surgimento de várias sequelas e agravamentos de algumas patologias, como depressão grave e distúrbio bipolar”, detalha.

Mas é reversível?

No Hospital das Clínicas, no Recife, Evônio Campelo abriu um ambulatório para atender pacientes com sintomas duradouros da covid-19 - o que chama de “covid longa”. Nesse espaço, trata centenas de pessoas que referem a piora em quadros de depressão, distúrbios bipolares, o surgimento de parosmia e, principalmente, a perda de memória. “São muitos casos de pessoas que tiveram [covid] de forma leve, não foi só nos casos graves”, alerta o médico. 

Por ser uma doença nova, ainda não se tem dimensão do dano neuropsiquiátrico que o coronavírus causa. Não se sabe, por exemplo, se essas sequelas são reversíveis.

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“A gente está no começo do entendimento dessa doença. Eu digo a muitas pessoas que acham que, por ser covid leve, está tudo certo. Não está tudo certo, porque a gente não sabe o que lá na frente vai se desenvolver. Será que vai sumir? Vai ficar por algum tempo? Algumas pessoas até agora não recuperaram o olfato. Mas o que fazer? Temos que estudar mais”, levanta o especialista.

A incerteza pode provocar medo em quem foi afetado dessa forma, mas Evônio diz que não é algo para se apavorar. Ao mesmo tempo, reforça que tampouco deve-se banalizar a covid-19. “A gente está com a vacinação avançando e a letalidade caiu, mas é importante que não se acredite que é uma gripezinha. A gente ainda não entende as repercussões da covid. Procurem não contrair a doença”, recomenda.

Médico infectologista reforça que ainda é importante evitar contrair o vírus / Ricardo Wolffenbuttel / Agência Brasil

O que posso fazer para melhorar os sintomas?

Por mais que não haja conclusão científica sobre o que pode aliviar ou melhorar os quadros de comprometimentos neuropsiquiátricos da covid-19, os médicos costumam fazer algumas orientações.

No caso das alterações no olfato, uma das principais indicações dos otorrinolaringologistas era para estimular o sentido com diferentes essências. Alguns pacientes conseguiram voltar a sentir cheiros com a ajuda desse método. “Também tem pessoas que tentaram e não houve melhora. Será que houve uma lesão muito direta na parte sensorial?”, questiona o infectologista.  

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No caso dos distúrbios de memória, Evônio sugere manter hábitos que exercitam a mente. “Estimular a leitura, fazer palavras-cruzadas, exercitar a memória, trabalhar o raciocínio. Tentar procurar fazer uma coisa que gosta, e fazer”, diz. 

É o que o engenheiro de software Henrique Black tem feito. Otimista, ele tem a esperança de que as coisas voltem a ser como eram ainda esse ano. “Como eu trabalho com lógica e gosto de me divertir com lógica, acho que, exercitando meu cérebro, ele volta”, torce.

Em todos os casos de sintomas persistentes, o ideal é ter acompanhamento médico especializado. Cada quadro clínico tem sua particularidade e pode ter, inclusive, outra doença por trás.

Edição: Elen Carvalho