“Basta de leilões”, reivindicaram cerca de 200 trabalhadores rurais em marcha no município de Ribeirão, Mata Sul de Pernambuco, na manhã desta segunda-feira (25). Em frente ao Fórum Desembargador José Antônio de Amorim, no município, os agricultores ergueram faixas pedindo “justiça para quem mora e trabalha na terra”. Há três anos que aproximadamente 1.200 famílias camponesas vivem com a ameaça constante de despejo da área que ocupam há mais de décadas.
Mesmo eles tendo o direito à posse, as terras onde funcionaram usinas que faliram e onde hoje moram os agricultores estão sendo vendidas em um processo que desabona as empresas das dívidas milionárias - inclusive trabalhistas - que possuem. A demanda dos camponeses é de que esses leilões sejam anulados. A tensão cresce progressivamente com a realização dos pregões, a invasão das terras, a expulsão dos pequenos produtores de suas casas e a escalada da violência - tendo feito vítima, recentemente, em fevereiro, uma criança de 9 anos filha de um líder comunitário do Engenho Roncadorzinho. O assassinato do menino Jonatas também foi lembrado no ato.
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O Roncadorzinho fica na Usina Santo André, no município de Barreiros, e é uma das comunidades que veem o cerco se fechar. Outras da cidade de Jaqueira também enfrentam despejos ilegais e hostilizações por parte das empresas de segurança contratadas pelos novos compradores das massas falidas.
Filha de um pequeno produtor de Jaqueira, Maria Aparecida da Silva Buarque, 30, viu a saúde mental e física do pai piorar com as ameaças que passou a viver. Há cerca de três anos, uma das terceirizadas invadiu parte do imóvel que tem no Engenho Borracha. Os agentes colocaram veneno no capim e apreenderam (ilegalmente) por quase um ano bens materiais e até o gado da família.
No final do ano passado, houve uma segunda invasão de parte das terras da família no Sítio Bananal, no mesmo município. “Derrubaram a casa que tinha, o [cocho] onde os gados ficavam para colocar ração, inclusive uma plantação de em torno 300 pés de coco e outros produtos de raízes. Foi uma perda total”, relata Maria Aparecida.
“Meu pai é uma pessoa de idade. Além de devastado, ficou muito mal, além da questão de saúde e segurança. É constante a ameaça de pessoas armadas na propriedade. Meu pai não pode trabalhar sossegado, porque a usina bota segurança armado dentro da área dele”, conta.
O caso do Engenho Borracha já foi para Justiça, onde três decisões foram favoráveis com decreto de posse à família. Mas a mulher denuncia que a medida judicial não é cumprida: “Toda vez que meu pai entra lá, eles invadem novamente”, aponta.
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Essa é a realidade da maioria dos camponeses em áreas de engenho na Mata Sul pernambucana, de acordo com o Geovani Leão, agente pastoral da Comissão Pastoral da Terra (CPT) - entidade que, junto à Fetape, está trabalhando na defesa dos direitos dos agricultores.
“O lado das usinas, das empresas que estão comprando terras nos leilões, sempre tem capangas. Já teve violência, já teve derrubada de lavoura, veneno na lavoura. Em Jaqueira, teve um agricultor alvejado a 7 tiros. Há 17 trabalhadores dessa região ameaçados de morte. Os leilões acontecem nesse turbilhão de conflitos nessas comunidades. Crianças, jovens, mulheres, homens, idosos, além de serem expulsos da terra, têm suas vidas ameaçadas”, colocou Giovane.
Movimentos denunciam fraudes no processo de venda
As terras estão sendo colocadas à venda por juízes que têm como responsabilidade a administração das massas falidas (como é o caso da Usina Santo André, entre Barreiros e Rio Formoso) e também pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (a exemplo dos engenhos de Jaqueira), segundo o agente pastoral.
“Estão fazendo isso sem que [os moradores] saibam de nada. Quando têm conhecimento, é já com oficial de justiça e policial na porta dizendo que tem que sair porque gente comprou. Depois a gente descobriu que a Justiça e a Fazenda Nacional estão leiloando como se ninguém morasse nesses engenhos. Mas moram centenas de famílias, há 50, 60 anos, há duas gerações”, falou.
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Na visão da organização, os leilões são injustos por uma série de razões: a falta de comunicação com as famílias, a dívida bilionária das massas falidas aos cofres públicos e a expulsão dos camponeses da terras onde moram.
Algumas das famílias têm direito reconhecido à terra por serem “credoras” das massas falidas - ou seja, quando as usinas decretaram falência, deixaram, entre outras as dívidas, créditos trabalhistas em aberto com os agricultores que eram empregados da empresa. Isso, em uma situação de despejo, garantiria alguma indenização a eles.
Mas essa parcela corresponde à minoria dos habitantes. “A maior parte não tem título de posse, não tem nada regularizado, apesar de que a gente sabe que, se uma família mora pacificamente numa comunidade há mais de anos, tem direito de posse. Só que esse direito não é reconhecido nem pela justiça nem pelo poder político”, expõe.
O advogado da CPT, Lenildo Lima, ilustra com números a proporção: “Das 67 famílias de Roncadorzinho, temos somente 26 credores trabalhistas. A justiça atenderia a esses 26 e despeja todos. Os outros que se virem”, aponta.
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Ainda assim, esse “atendimento” está longe de ser suficiente para os credores. Os imóveis estão sendo subprecificadas pela Justiça - uma das fraudes do processo do leilão denunciadas pelas organizações.
“Os trabalhadores estão recebendo merrecas com esses leilões. Muito pouco. Não está chegando a 10% do crédito trabalhista. E a terra também está sendo subavaliada para valores ínfimos. Como estamos vendo na comarca de Ribeirão, uma [indenização] foi feita a 10% do preço que a Justiça do Trabalho avaliou os imóveis”, expõe.
Leilão para desfazer dívidas
Ainda há outros pontos do leilão que Lenildo questiona. De acordo com ele, os compradores dos terrenos são justamente os antigos proprietários que faliram, em uma manobra que os isentaria de pagar todas as dívidas à União, ao Estado e aos trabalhadores. Só ao Governo de Pernambuco, a Usina Santo André deve R$ 25 milhões. “Quando não são eles mesmos [os devedores], são pessoas patrocinadas por eles, sócios aliados. Pessoas das mesmas estirpes, tanto econômica quanto política”, afirma.
A finalidade de uso da área, calcula Leonildo, seria não mais para o cultivo da cana-de-açúcar, mas sim para a produção de boi. “Os leilões cuidam de fazer essa função: limpar passivo [dívida] sem pagar erário público e devolver para essa burguesia agrária que domina a região há séculos a terra limpa de qualquer dívida, para implantar uma economia muito mais exploradora do meio ambiente e socialmente muito mais injusta que a cana, que é a pecuária extensiva.”
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A ação do Judiciário nesse momento, diz ele, tem sido de “limpar o campo a favor de quem sempre foi beneficiado com a economia na região”. Em Jaqueira, por exemplo, algumas famílias chegaram a fazer a negociação de terra na Justiça do Trabalho, mas o processo não foi registrado no cartório. “ A empresa [de segurança] cercou a força e tirou o pessoal de lá. A pessoa esta escriturada, faz quase um ano e a Justiça não julga o processo, sequer cita a empresa, o pedido de liminar”, pontua.
De acordo com o advogado, as empresas chegam a recorrer à lei do Despejo Zero como motivo para permanecerem nas terras. A lei federal nº 14.216/2021 foi aprovada para impedir remoções forçadas durante a pandemia da covid-19, tendo em vista a situação de vulnerabilidade social que assolou a população brasileira. “[As empresas estão fazendo] o contrário de tudo que a gente acredita e faz”, comentou.
Edição: Vanessa Gonzaga