A condução do enfrentamento ao surto mundial da varíola dos macacos (monkeypox) pelos organismos de saúde tem deixado em alerta o movimento aids. O receio é de que os encaminhamentos focados exclusivamente em homens que fazem sexo com homens (HSH) - população com prevalência de 98% casos - gerem estigma ao mesmo tempo em que prejudiquem a contenção da doença, em semelhança ao que ocorreu na década de 1980 com o HIV.
“A gente tem a preocupação de que sejam reproduzidos os erros do início da pandemia do HIV e que até hoje tem repercussões de estigmatização da população HSH e LGBTQIA+ de forma geral”, pontua Juliana Cesar, integrante do Conselho Municipal de Saúde do Recife e assessora de Programas da ONG Gestos, que defende os direitos das pessoas vivendo com HIV/AIDS.
Ela alude ao século passado, relembrando que havia uma visão de que a aids era como uma “praga divina” enviada sobre a “população que vive em pecado”. “E mesmo quando já se sabia de maneira mais segura os meios de transmissão, não houve investimento em desfazer os mitos que foram criados. “A gente sabe o histórico do Brasil, existe muita violência e discriminação. Não podemos esperar que [a homofobia] magicamente não se manifeste se a varíola expandir e ficar um pouco maior.”
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Ainda que tenha reconhecido que todos estão suscetíveis a contrair o vírus da monkeypox, o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom, dirigiu apenas aos homens gays e bissexuais a orientação de reduzir o número de parceiros sexuais e reconsidar o sexo com novos parceiros. A fala foi feita em coletiva de imprensa no último dia 27.
Na visão de Juliana Cesar, o pronunciamento possui dois erros: ser voltado para apenas um grupo de pessoas e carregar uma mensagem moralista. Afinal, a monkeypox não é transmitida somente em relação sexual ou íntima, basta haver contato direto com lesões de pele, fluidos corporais ou até mesmo com objetos que foram tocados por uma pessoa contaminada.
“Quando se pega determinada população que concentra números de casos da doença mas não é a única vulnerável e se dirige somente a ela, essa mensagem, que deveria ser geral - e que não necessariamente é correta -, acaba estigmatizando aquele grupo”, afirmou.
O tipo de discurso adotado pelas entidades de saúde, que repete a retórica usada quando pouco se sabia sobre a aids, também pode resultar no fracasso das ações de prevenção. Isso porque, segundo Juliana, direcionar toda informação a apenas a um grupo cria uma sensação entre a população geral de segurança contra a monkeypox.
“É frequente que uma doença se concentre numa determinada população durante determinado período de tempo. Isso acontece com várias questões. Essa, por algum acaso, se iniciou com concentração grande entre HSH – isso é um fato, mas não está restrita a esse grupo. Não há porque se pensar que, se esse surto não for contido, não vai em breve se expandir para outros grupos populacionais. A gente precisa de ações baseadas em ciência e que já confrontem isso”, alerta.
“Se você espalha que isso é doença dos gays, as pessoas começam a atribuir a eles a responsabilidade, a culpa do agravo se espalhar - o que é péssimo, cria julgamentos morais - e você perde a oportunidade de diminuir o número de casos e focar no que interessa”, completa.
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A especialista avalia mal as medidas de saúde que vêm sendo aplicadas não só no país, mas em todo o globo. “A gente tem que lembrar que a testagem está bem deficitária no mundo inteiro, não tem a cobertura adequada. Provavelmente já há transmissão comunitária (quando não é possível rastrear de onde pegou a doença) nos estados que a gente não está sabendo. As pessoas não sabem da doença, nem a classe médica ainda foi devidamente informada sobre isso”, coloca.
Ela conta que, na articulação da Gestos com outros países da América Latina, ouve relatos sobre médicos que nem sequer cogitam a possibilidade de o paciente estar com a varíola dos macacos ou que, ao saberem que estão tratando uma pessoa heterossexual, descartam completamente a hipótese do diagnóstico.
Para a ONG, a ampliação da comunicação para a população geral não descarta a necessidade de ações voltadas para HSH. “Se a gente interrompe o ciclo de transmissão enquanto está circunscrita a um grupo específico, a chance de interromper o surto e não deixar se transformar em endemia é bem maior. Questão de lógica”, complementa.
Em relação ao Brasil, ela critica também a atuação do Ministério da Saúde (MS) na gestão da crise. Não há uma coordenação nacional que defina um protocolo único, por exemplo, como existiu para a covid-19. “Falta uma coordenação nacional para sistematizar, padronizar, criar uma estrutura de suporte para que possam identificar a doença, e não deixar cada estado e município agir ao seu bel prazer, e dizer quem testa, quando e como”, defendeu.
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Em 23 de maio, o MS chegou a abrir uma Sala de Situação para monitorar o avanço da doença, mas encerrou suas atividades em 11 de setembro, passando as atribuições para a Secretaria de Vigilância em Saúde.
Perguntada sobre se a doença tem recebido pouca atenção justamente por sua associação à comunidade LGBTQIA+, ela responde que não pode afirmar com certeza, mas que “o histórico do atual governo na resposta a diversos agravos é bem lamentável”.
“A atitude que tem tido em resposta ao HIV/aids, as demandas para o enfrentamento, uma resposta na qual o Brasil já foi tão líder, estão bastante deficitárias. As declarações do governo sobre a população LGBTQIA+ não são favoráveis. Você junta tudo isso, tem um contexto não muito adequado.”
O Brasil negociou via consórcio a compra de 50 mil doses da vacina contra a monkeypox. O imunizante será administrado em duas doses para os seguintes grupos prioritários: profissionais de saúde que manipulam as amostras recolhidas de pacientes e pessoas que tiveram contato direto com casos confirmados da doença. O primeiro lote deverá chegar em setembro, segundo o MS.
O médico Bruno Ishigami, infectologista na Clínica do Homem no Recife, acredita que a OMS vem cumprindo seu papel de monitoramento, com reuniões semanais, e de informar e criar protocolos. Contudo, também avalia que as políticas do Ministério da Saúde têm deixado a desejar.
“A gente está vendo o surgimento da monkeypox há alguns meses, e não vê praticamente nada de orientação de prevenção. Mas, para mim, isso é resultado do desmonte que a gente vem sofrendo no Brasil. A gente teve pouquíssima orientação de prevenção contra covid-19, e tem quase nada de orientações de prevenção contra outras infecções, principalmente as sexualmente transmissíveis. O grande problema, mais uma vez, é esse: o Governo fica ausente nessas informações, e aí a gente cria muita brecha para fake news e desinformação”, afirma.
"Estamos vivenciando um momento extremamente conservador”
Há 33 anos vivendo com HIV, Wladimir Cardoso Reis testemunhou o início da pandemia de aids sentiu na pele o impacto das políticas que marginalizavam quem testava positivo para o vírus. Ele, que é coordenador do Grupo de Trabalhos em Prevenção PositHIVo (GTP+) - organização da sociedade civil voltada para o acolhimento de pessoas com HIV/aids -, também está preocupado com as implicações que o tratamento que a varíola dos macacos poderá ter na sociedade.
“33 anos atrás não havia medicação contra HIV e o grande problema da época era o preconceito e a discriminação. Nossa grande preocupação quando a gente fala da varíola no Brasil é justamente dentro dessa perspectiva”, pondera. “Já vejo isso claramente. Estamos vivenciando um momento extremamente conservador.”
Entre as muitas áreas da saúde afetadas pela gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), as políticas públicas de luta contra o HIV/aids também sofreram retrocessos ao longo dos últimos anos. O MS acabou com o departamento de HIV/aids e jogou suas atividades para o balaio do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis.
Na ONG em que atua, Wladimir escuta as palavras de sofrimento de quem ainda enfrenta discriminação. O preconceito é tanto, que há quem deixe de frequentar certos espaços por não se sentirem bem vindos. “Nossa organização atua com pessoas vivendo com HIV e são pessoas em diversas situações, inclusive heterossexuais, e diversas vivências em igrejas conservadoras. Apesar de professarem a fé, elas não se colocam lá porque o estigma e preconceito existem claramente nesses lugares”, relata.
E como tratar da população mais vulnerável à monkeypox sem criar preconceitos?
O infectologista Bruno Ishigami diz que o momento pede cautela. “O HIV mostrou isso para a gente de forma bem ruim, quando a gente disse lá atrás, que era uma doença exclusiva de gays, de gente que era promíscua. A gente criou estigmas que existem até hoje”, lembra.
O médico apresenta, então, o conceito de ‘populações-chave’: “São grupos populacionais mais importantes e que estão mais suscetíveis a contrair as infecções. Quando a gente coloca dessa forma, consegue manter um certo de distanciamento e diminui o surgimento desses preconceitos”, considera.
A responsabilidade da imprensa também entra em pauta. “Se você começa a fazer matéria de que HSH tem que se cuidar, mas só com esse enfoque, naturalmente vai se criar um preconceito.”
Como Juliana Cesar pontuou acima, Bruno Ishigami também defende que deve haver políticas específicas para a população mais vulnerável à monkeypox - mas não sem deixar claro que a população geral também tem que se cuidar.
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Ele indica a todos as seguintes medidas: “tomar cuidados, prestar atenção nos surgimento de sintomas, que são bem específicos: febre, dor no corpo, alguns linfonodos aumentados e as lesões de pele características. Se está surgindo lesões de pele na característica do monkeypox ou teve contato com alguém que estava com lesão de pele, procure um serviço de saúde”.
Para os homens que fazem sexo com homens, ele continua: “Não gosto do discurso do: ‘pare de transar com muitas pessoas’. Isso nunca funcionou com o HIV e não é hoje que vai funcionar com a monkeypox”. O que ele orienta, então, é ter muita atenção e consciência nas relações sexuais e “pensar e refletir sobre o quão importante é ir para um ambiente onde existe sexo com muitas pessoas”. É que, quanto mais gente estiver em um espaço, principalmente quando se tem contato de pele, maior o risco.
Edição: Vanessa Gonzaga