Trazendo a literatura e o povo negro para a centralidade do debate, o Literanegra é um canal do Youtube com mais de 15 mil inscrições na plataforma e quase 30 mil seguidores no Instagram. Conversamos com Messias Martins, que é um historiador e realizador da criação do canal.
Brasil de Fato Pernambuco: Messias, conta como surgiu o canal e se você esperava chegar em tanta gente.
Messias Martins: O canal teve uma grande influência em relação a uma série de inquietações da época que eu trabalhei como livreiro, e passei alguns anos trabalhando em algumas livrarias em São Paulo e no Recife também, e era muito comum as pessoas perguntarem sobre alguns livros que não conhecíamos. Como vários tipos de pessoas frequentam a livraria, inclusive aquelas pessoas que acham que os livreiros leram todos os livros que têm disponível, quando na verdade, só temos tempo de acompanhar as resenhas dos livros, no Youtube, por exemplo.
A autora Chimamanda Ngozi Adichie, contribuiu bastante para o meu aprendizado. Na primeira vez dela ao Brasil, ela cita um teste de pescoço, que é aquele movimento que fazemos com o pescoço quando chega em determinado lugar para ver quais são os corpos que estão ocupando aqueles lugares, quem está em pé servindo e quem está sentado sendo servido. Comecei a fazer esse movimento também e a acompanhar esses vídeos, os “booktubers” como tinha na época, e reparar que tinha pouquíssima produção referente a autores negros, como se os negros não escrevessem livros.
Além de que, não me recordo desses “booktubers” serem negros, também pareciam ser de uma classe diferente da minha vida, todo o aparato de estrutura que tinham para as gravações. Então eu fui alimentando essas inquietações por algum tempo, quando entrei em 2016 para fazer história na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) resolvi aliar as coisas que estava aprendendo na universidade com as experiências que tinha como livreiro também. Juntei coragem e então nasceu o Literanegra na internet desde 2016.
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BdF PE: Messias, você estudou história, chegou a cursar, e agora estuda arquivologia. Nessas suas experiências e na área de educação popular, você acredita que as referências literárias negras estão de fato ocupando espaços ou a gente ainda vive uma realidade de muita invisibilização dessas produções?
Messias Martins: Na minha visão, temos ocupado os espaços a partir da Lei de Cotas, tem a Lei nº 11.639, que é a Lei de obrigação do ensino de história de África e relações étnico-raciais nas escolas e nas universidades também. Uma lei que começa em 2003, tem um avanço em 2004 para as universidades, mas quando eu estava na universidade em 2016, só tive uma disciplina sobre o ensino de África. Então estudei um continente inteiro em um período de três ou quatro meses que é o quanto dura um período sem interrupção.
Comecei a enxergar a partir da entrada na universidade que fomos ocupando alguns espaços principalmente por essa lei de cotas, também fui cotista na UFPE e sou cotista na Universidade Federal Fluminense (UFF), e estamos ocupando esses passos, mas ainda é insuficiente, se levar em consideração esses 500 anos de história.
BdF PE: Messias, quando trazemos um recorte da literatura e da educação do povo negro no Nordeste, você acredita que a invisibilização é maior?
Messias Martins: Acredito e tenho dados concretos para argumentar sobre isso. Tem uma pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, de 2016, ela é da Universidade de Brasília (UnB), e faz um levantamento de 1960 até 2015 de todos os livros publicados, na verdade ela faz um levantamento de quase 900 títulos, e desses analisados apenas 10% eram de atores negros e, ainda assim, bastante dados para o Sudeste.
Não me recordo de ter algum autor que fosse nordestino dentro dessa pesquisa, mas 90% deles estão entre Rio de Janeiro e São Paulo e são majoritariamente compostos por homens brancos e por sua vez acabam reproduzindo na sua literatura a sua vivência. Então, temos quase 90% da literatura nacional de homens brancos, da classe média alta, desses grandes centros urbanos do Rio de Janeiro e São Paulo, majoritariamente”.
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BdF PE: Messias, estamos falando de uma disputa de narrativas que faz parte de um projeto de país, de uma visão de mundo, de perspectivas de sociedade. Qual o papel da educação, literatura, dos livros, da leitura, na luta antirracista?
Messias Martins: É fundamental. Inclusive, tem uma música dos Racionais Mc’s, “Capítulo 4, versículo 3”, do álbum fabuloso que foi o Sobrevivendo no Inferno e Mano Brown diz que “a furia negra ressucita outra vez”, e quando eu penso sobre isso, fico pensando que tanto Mano Brown como Edi Rock, KL Jay e Ice Ble sabiam no final de 1997 que eles não eram a ponta de lança na luta antirracista.
Acho que eles representavam uma luta que era ancestral, uma luta histórica e é bonito falar hoje “fogo nos racistas”, mas pode também se armar com essa história ancestral que nos precede. Deixar um pouco de lado aquela vontade absurda de sentar-se na janela e entender que na verdade a luta é histórica. Tem o movimento negro com décadas de atuação, por exemplo.
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BdF PE: Quem for no Youtube assistir ao Literanegra, o que vai encontrar? Que tipo de indicações você tem trabalhado por lá e qual seria um bom ponto de partida para começar a conhecer as nossas produções negras?
Messias Martins: Olha, eu vou começar pela Santíssima Trindade do canal, que é a Maria Carolina de Jesus, dou a indicação do "Quarto de Despejo”. As outras personalidades dessa Santíssima Trindade são Conceição Evaristo e Angela Davis e tem vídeos de cada uma delas lá no canal. Gosto muito das três, elas dão encaminhamento para uma linha editorial que gosto no canal.
E uma indicação além dessas três, seria o vídeo mais recente que publicamos no canal que seria “Água de Barrela”, da autora Eliana Alves Cruz. Inclusive, temos um quadro no canal que é o "Literanegra convida”, onde recebemos algumas pessoas que gosto e que eu admiro para estar conversando sobre literatura e sobre as formas que ela possibilita não só de pensar, mas também construindo um mundo novo.
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Edição: Vanessa Gonzaga