O processo de criação da Reserva Extrativista (Resex) Rio Formoso para garantir a conservação de recursos naturais em três municípios do Litoral de Pernambuco avançou e chega perto das etapas finais com a consulta pública realizada nessa terça-feira (23). Essa é uma demanda de pelo menos 20 anos das comunidades pesqueiras tradicionais que querem proteger os manguezais contra a pressão do trade turístico na região.
Os pescadores artesanais de cinco colônias de Rio Formoso, Tamandaré e Sirinhaém compareceram em peso à audiência, representando a maioria das cerca de 400 pessoas presentes no auditório do Centro de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Marinha do Nordeste (Cepene), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e localizado em Tamandaré.
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Também formaram o público vereadores, representantes da rede hoteleira, de usinas e do Grupo JCPM, que por sua vez demarcaram um posicionamento em desfavor do projeto. A consulta começou com as falas da mesa composta por pesquisadores, integrantes do ICMBio, do Governo de Pernambuco e das prefeituras. Em seguida, o microfone foi aberto para os ouvintes, que defenderam seus argumentos a favor e contra a instituição desse tipo de unidade de conservação.
A implementação de uma Resex significa a concessão pelo poder público do uso do território para as comunidades extrativistas tradicionais. Havendo áreas privativas no local, isso envolve a desapropriação de terras - mas, a princípio, esse não seria o caso, pois a zona delimitada no projeto é de domínio público e até agora não foi identificada nenhuma propriedade privada, informou a secretária estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade, Inamara Mélo, ao Brasil de Fato Pernambuco.
A reserva extrativista iria não só proteger os estuários de Rio Formoso, Tamandaré e Sirinhaém contra a exploração não sustentável, mas também assegurar a subsistência das comunidades que vivem na pesca. Serão beneficiadas quase 2.500 pessoas, entre elas 80 quilombolas da comunidade Engenho Siqueira.
Educadora social do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), Laurineide Santana conta que o movimento assessora os trabalhadores nesse pleito desde 1999, quando formularam a primeira proposta, endereçada ao Governo Federal, que não foi para frente.
“É uma área fundamental onde vivem quase 3 mil famílias que sobrevivem daquele estuário, e o turismo está chegando com todo o peso e vai inviabilizar totalmente a pesca, principalmente das mulheres. São mais de 7 mil pessoas que vivem desse estuário e, se a gente não lutar, o território tradicional simplesmente será dizimado para o turismo”, fala à reportagem.
A área delineada para a Resex, bem como o seu entorno, já é considerada uma unidade de conservação: trata-se da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guadalupe, que por si só já impõe restrições quanto à atividade humana em parte das cidades de Sirinhaém, Rio Formoso, Tamandaré e ainda Barreiros.
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Nos termos atuais, a nova Resex abrangeria uma área total de 2,2 mil hectares. Desses, 1,4 hectares são de Sirinhaém; 656, de Rio Formoso; e 135 hectares, de Tamandaré. Veja os números em detalhes no fim do texto. Três rios formam o estuário da reserva: Formoso, Passos e Ariquindá.
A influência do empresariado sobre a questão política da implantação da Resex é a preocupação do CPP agora, já que a parte técnica e legal da petição deu sinal verde para o projeto ir para frente. “Tecnicamente não tem nada que inviabilize. O que acontece é que existe interferência do poder econômico que está pressionando para não ser criada. Essa correlação de forças no momento de eleição é o nosso grande desafio”, diz Laurineide.
O apelo do grupo é para, ao invés de instituir uma reserva extrativista, fortalecer as normativas da APA, aponta Laurineide. Ela explica que uma diferença fundamental entre esses dois tipos de unidade de conservação repousa nos modelos de gestão.
A Resex possui um conselho multisetorial (do qual participam órgãos governamentais, entidades da sociedade civil e representações das populações tradicionais) que é deliberativo - ou seja, dá às comunidades autonomia no processo de tomada de decisões. Já o conselho da APA de Guadalupe em que participa a sociedade civil são apenas consultivos, conforme dispõe a lei estadual que cria o colegiado.
“É uma área de turismo predatório forte, que pega a Praia de Carneiros, que interfere diretamente na vida na pescaria com [o fluxo de] grandes lanchas e grandes barcos. Criar a Resex seria, de uma certa forma, trabalhar a organização e a gestão desse território”, define a representante do CPP.
Os pescadores ainda vão discutir o resultado da audiência pública, mas, de antemão, Laurineide antecipou que o tamanho da Resex ainda não é satisfatório para a comunidade, pois há áreas de manguezais que ficaram de fora do perímetro. "[Na audiência] até um dono de terra disse: 'meu mangue tem 70 hectares de manguezal cercado', na frente da Semas [Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade]."
Mais duas etapas para aprovação final
O pedido de criação da Resex foi protocolado na Semas em 26 de julho do ano passado - data em que é celebrado o Dia Internacional para a Conservação dos Manguezais. Quem assina são entidades representativas CPP NE2, Colônias de Pescadores de Rio Formoso (Z-07), de Barra de Sirinhaém (Z-06), de Tamandaré (Z-05), Associação da Comunidade Quilombola Engenho Siqueira e Associação Mangue Verde.
Junto à petição, foram anexados documentos técnicos que subsidiam a viabilidade do projeto que vinham sendo produzidos com apoio do Cepene, do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), do Instituto Recifes Costeiros (Ircos), do Programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração Tamandaré Sustentável, Instituto Meros do Brasil, da UFPE e CNPq.
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De lá para cá, houve as etapas de reuniões técnicas e de articulação, a criação de um grupo técnico da Semas com CPRH, aprimoração conjunta da proposta e mobilização social até chegar na consulta pública. A contar dessa terça-feira, as partes têm 30 dias para apresentar à Semas novas considerações sobre o projeto a partir do que foi discutido. A população geral pode participar da consulta pública pelo site da secretaria.
A partir de então, a pasta irá avaliar as proposições e incorporá-las ou não ao projeto, explica a secretária estadual Inamara Mélo. Uma vez concluído, será submetido ao Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema), órgão constituído por Governo e sociedade civil. Ou seja, a despeito de o processo já estar em suas fases finais, ainda não é garantia que a Resex Rio Formoso vingará.
Se o Consema der o aval, chegará à etapa final: a escolha, elaboração e emissão do instrumento jurídico de criação da reserva. “Estabeleceria aquilo que é a definição do uso, seja por decreto ou por lei. Depois, seria criado o conselho gestor para aprovação de um plano de manejo daquela área”, detalha a representante da pasta. O Conselho Pastoral de Pescadores avalia que o instrumento ideal seria o decreto estadual, por ter um trâmite mais rápido.
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Apesar de a APA já impor critérios de preservação na região, na prática, a Resex definiria mais enfaticamente o uso do território para atividades extrativistas, dando prioridade às comunidades tradicionais, explica Inamara.
“Embora não altere significativamente as restrições para as diversas atividades, [a reserva extrativista] poderia assegurar para as áreas de manguezal aquilo que seriam melhores condições para sua preservação”, contextualiza.
Se for aprovada, essa será a primeira Resex a nível estadual de Pernambuco. Hoje, a única reserva extrativista existente no Estado é de gestão federal: a Acaú-Goiana, que abrange também municípios da Paraíba.
Reserva deixa de fora áreas de turismo
As reservas extrativistas têm ao redor de seus perímetros a “zona de amortecimento (ZA)”, uma faixa em que as atividades funcionam sob normas específicas, como uma área de transição. No caso da Resex Rio Formoso, a proposta é de que haja um amortecimento de 50 metros nas áreas urbanas e de 300 metros nas zonas rurais, mas esses números ainda podem passar por revisão, falou Ana Lídia Gaspar, do Instituto Recifes Costeiros, na audiência pública.
Essa ZA também já está incluída na APA de Guadalupe, de modo que as diretrizes permanecerão as mesmas. Em suas exposições, os técnicos reforçaram que, por esse motivo, a nova unidade de conservação não causará impacto nas atividades econômicas do entorno - de comércio a pousadas e indústrias. Para além disso, “a área onde o turismo é mais intenso já está fora do limite da Resex”, acrescentou Ana Lídia. Ponto que, como adiantou Laurineide Santana, não agradou toda a comunidade pesqueira.
A Resex Rio Formoso em números
Área total: 2.242,10 hectares
Sirinhaém - 1.450,29 ha
Rio Formoso - 656,85 ha
Tamandaré - 134,96 ha
Pescadores cadastrados: 2.435
Rio Formoso Colônia Z-7: 426
Sirinhaém Colônia Z-6: 1065
Sirinhaém Associação Mangue Verde: 353
Tamandaré Colônia Z-5: 511
Comunidade Quilombola Engenho Siqueira: 80
3 rios formam o estuário: Formoso, Passos e Ariquindá
Edição: Vanessa Gonzaga