Neste Dia Nacional de Luta pela Democratização da Mídia, ganha destaque o debate sobre a urgência de democratizar a comunicação e regulamentar a mídia brasileira. A data serve como mote para cobrar do poder público que o direito à informação seja garantido e que a comunicação esteja voltada aos interesses públicos, garantindo a pluralidade de vozes e opiniões.
Desde a década de 1990, movimentos de comunicação e cultura vêm pautando a necessidade de regulamentação das concessões de rádio e TV previstas na Constituição Federal, como explica Rosa Sampaio, militante pelo direito à comunicação e jornalista do Centro Sabiá.
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Ela pondera que o contexto atual demanda ainda mais ações nesse sentido. “Desde o golpe da presidenta Dilma, os primeiros movimentos de Temer foram no sentido de desmantelar o pouco que a gente tinha conseguido, especialmente com o desmonte da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). Ela que foi a semente para começarmos a discutir a comunicação pública, a importância de se ter uma comunicação voltada para a pluralidade com editais abertos à participação da sociedade”, pontua.
“Desmonte, perseguição, censura, assédio moral e corte de benefícios dos profissionais da EBC é o que temos visto. A gente sabe que teve muito dinheiro do governo federal enviado para a Record, inclusive para novelas, enquanto os funcionários da EBC ficaram sem os seus benefícios. A transparência da publicidade oficial retrocedeu. A gente não sabe sobre os gastos da publicidade oficial do governo federal. Um último golpe que a gente sofreu permite concessão de rádio e TV vendendo 100% do seu conteúdo. Isso para nós é demais. Sem contar o número de concessões que mais do que dobrou para grupos evangélicos”, destaca a jornalista.
Iniciativas pernambucanas
Apesar do cenário de retrocessos, em Pernambuco, existem diversas iniciativas de mídia independente e popular que abrem brechas e fazem contraponto à mídia hegemônica. No mapeamento feito pela Marco Zero Conteúdo, é possível conhecer muitas dessas experiências que comunicam assuntos imprescindíveis para a população e possibilitam avanços na construção de uma sociedade democrática.
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Uma delas é o Coletivo Acauã, que tem base no sertão e no agreste de Pernambuco e produz jornalismo independente. Géssica Amorim, estudante de comunicação social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em Caruaru, é a idealizadora do Acauã, que atualmente reúne mais quatro pessoas: Cladisson Rafael, Márcio Correia, Maryanne Martins e Mayara Bezerra. Ela compartilha que o objetivo do Acauã é dar visibilidade a locais pouco abordados pela mídia tradicional.
“O nosso foco são os desertos de notícias e o jornalismo local. Falamos a partir de lugares que têm pouca ou nenhuma cobertura de imprensa. Estamos no sertão e no agreste do estado. Eu falo dos municípios de Flores e Betânia, no sertão, e os outros integrantes falam do agreste, das cidades de Caruaru, Santa Cruz do Capibaribe e Cachoeirinha. Nós procuramos produzir conteúdos sobre e para pessoas e lugares que pouco aparecem na mídia tradicional corporativa”, destaca Géssica.
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Outra iniciativa pernambucana é o Sargento Perifa, veículo de comunicação independente do Córrego do Sargento, no bairro Linha do Tiro, no Recife. Martihene Oliveira é uma mulher preta, jornalista, comunicadora popular, idealizadora e coordenadora do Coletivo Sargento Perifa, e explica que o projeto surgiu em parceria com o jornalista Gilberto Luis em 28 de maio de 2020. Atualmente, o Sargento Perifa conta com 15 projetos e está em cinco territórios contando com o Córrego do Sargento: Linha férrea, na Joana Bezerra, Comunidade Canal da Vovozinha, em Santo Amaro, Rua do Condor, favela que fica na divisa entre Olinda e Recife, e a comunidade do Rio Morno que fica também no bairro Linha do Tiro.
“A ideia é dar visibilidade à comunidade, que fica na Linha do Tiro, e sempre foi uma comunidade que viveu à margem até do próprio bairro, que já no nome sofre bastante preconceito. Ninguém conhecia a região, mas quando se ouvia falar era só por coisas negativas. E a gente via dentro da comunidade várias iniciativas autônomas de moradores fazendo algo para a comunidade e ninguém aparecia. Então a ideia foi criar um veículo que noticiasse essas coisas, que falasse da favela da forma como a gente gostaria que ela fosse falada, dos projetos que aconteciam”, compartilha Martihene.
No Sargento Perifa, quem produz as notícias é a própria comunidade para a comunidade e sempre com viés antirracista. A equipe de mídia é formada por crianças e adolescentes que têm oficinas práticas de jornalismo. “Eu e Gilberto aplicamos oficinas, colocamos a câmera na mão das crianças. Nas sextas-feiras, a gente dá aula sobre jornalismo, na qual eles aprendem o que é um lead e já vão contando as histórias para a gente. Em cada ação, a gente tem uma criança escalada para fazer a cobertura e exercer o que aprende”, explica a coordenadora.
Aprendizados
O que se aprende nas experiências de trabalho nos coletivos é muito diverso. “Para nós, cada lugar significa, independente do seu tamanho e de onde esteja localizado. Produzindo, nós temos aprendido isso, principalmente”, afirma Géssica. Para Martihene, tem ficado a compreensão de que “uma comunidade unida pode, sim, mudar o retrato da favela. Quando a gente busca sobre o Córrego na internet, já aparecem boas notícias, nossas produções. O coletivo é a comunidade inteira”.
De acordo Rosa, toda a sociedade se beneficia com os veículos de comunicação popular e independente. “As mídias independentes têm nos trazido notícias fora da bolha da hegemonia, pautando assuntos que, às vezes, as emissoras não têm coragem, mesmo quando elas estão sendo ameaçadas por um governo que não respeita a liberdade de imprensa. Os veículos populares e independentes têm levado ao debate assuntos como os retrocessos em políticas públicas em todos os campos, em contexto no qual os direitos humanos estão sendo desrespeitados o tempo todo”.
Barreiras
Os desafios enfrentados, contudo, impedem que essas iniciativas cresçam e cheguem a mais pessoas. A falta de recurso é um gargalo apontado pelas duas comunicadoras. “Nós precisamos de trabalhos paralelos, já que não temos nenhum retorno financeiro no coletivo ainda. Isso interfere diretamente na execução das nossas ideias e na frequência das nossas publicações. A gente precisa se deslocar, precisa de um domínio para melhorar a difusão das informações online, além de precisarmos comer e pagar as contas também”, observa Géssica.
“Tem muita coisa que a gente quer fazer, mas não tem tempo e não tem dinheiro. Por não ter dinheiro, cada um tem que trabalhar em outras coisas. Aí a gente só consegue fazer as coisas nos fins de semana. Mas ainda assim, para manter a constância sem remuneração, é complicado”, lamenta Martihene.
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Para Rosa, a democratização da mídia no Brasil segue impedida enquanto não for restabelecida a democracia. “Não tem como a gente falar de democracia se a gente não tem liberdade de expressão e de imprensa. Não tem como a gente falar de democratização, se a gente não sabe como estão os gastos com a publicidade oficial em comunicação, se tem pessoas ligadas à militares nas pastas de comunicação do governo. O que precisa necessariamente é a retomada da democracia”.
O que é ser mídia independente e popular
“Para nós, a mídia independente é liberdade. Liberdade para abordar assuntos, liberdade para a gente discutir, refletir e cobrar sem amarras, para melhorar o que coletivamente precisa ser melhorado ao nosso redor”, compartilha Géssica.
Martine acredita que ser veículo independente “é viver sem amarras. É fazer um jornalismo sem amarras, honesto, apesar de todos os desafios. Consigo ver essa liberdade que a gente tem na escrita, a liberdade que a gente tem de fazer as coisas no nosso tempo, de sentar com a fonte, poder voltar lá depois que publicar a matéria, de ter esse compromisso, essa relação é gratificante”.
Edição: Vanessa Gonzaga