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Coluna

O espetáculo da superação e o corpo com deficiência como ferramenta

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O Qatar entrega o evento mais acessível de todos os tempos - Reprodução / Twitter / FIFA World Cup
Uma das copas mais polêmicas dos últimos tempos, visto as repercussões acerca das discriminações

O futebol tem se desenhado no imaginário social através das múltiplas lentes das contradições. Melhor explicando, ao mesmo tempo em que é um esporte coletivo com protagonismo consolidado para poucos, cada vez mais técnico, dependente da análise de especialistas – homens – e uma das maiores indústrias econômicas do mundo, ele detém, sem sombra de dúvidas, ferramentas de unificação, alegrias, projeções, emoções e sonhos e, por isso, uma capacidade gigantesca de mobilização. 

Visto isto, neste ano o maior evento esportivo do planeta que é a Copa do Mundo de futebol acontece no Qatar, a qual, em sua abertura escancara a presença de Ghanim Al Muftah, jovem de 20 anos com deficiência, apresentado pelas mídias brasileiras como influencer, o que considero muito pouco, já que é uma das figuras públicas de maior impacto, não apenas no Qatar, mas no oriente de um modo geral. Ghanim, escolhido pelos organizadores sede para ser o embaixador do evento, ao entrar no espetáculo pergunta: sou bem –vindo? 

Ainda que de maneira metafórica e incipiente responder a essa pergunta é uma tentativa de dialogar com as contradições, as quais se configuram em compreender que ao mesmo tempo em que o embaixador Ghanim ocupa esse espaço de importância e visibilidade, por outro ângulo, a lógica do telespetáculo, a partir das apropriações de um sistema opressor, se utiliza desse salto para perpetuar a dramatização como valor sobre a existência das pessoas com deficiência.  

A estratégia utilizada na abertura da copa, consiste basicamente na mesma proposta dos campos conservadores há tempos, inclusive do próprio governo Bolsonaro. A aparição de pessoas com deficiência como um modo de sensibilizar, agregar e expandir o discurso de superação, tendo como argumento o desejo de uma sociedade para todos; reluzente aos olhares midiáticos e cruéis aos que precisam comprovar sua capacidade de existir, diariamente limitada por barreiras. 

Nas copas anteriores mais recentes, como a do Brasil em 2014, utilizaram o exoesqueleto para levantar o corpo de Juliano Pinto – jovem brasileiro de 29 anos que tem como condição a deficiência física – e dar o “pontapé inicial da copa”, este, narrado nas mídias com a entonação de que as pessoas com deficiência física são de uma forma caricata “gente capaz”, abastecendo no imaginário coletivo a ideia de um exemplo que se supera, apesar de ser quem é, como fica evidente na narração de Galvão Bueno na data (2014): “Aqui a gente vê a capacidade de superação do ser humano: ele que é preso a uma cadeira de rodas, um rapaz paraplégico que vive esse momento”.

A pesquisa de Silvan Menezes (2018), professor do curso de Educação Física da Universidade Federal de Alagoas, o qual avaliou o processo de produção de notícias dos jogos paralímpicos, explana conclusões semelhantes. O pesquisador afirmou que em diversos momentos observou o fato da narrativa de superação ser mobilizada por jornalistas, na produção das notícias, como meio de inspiração e de exemplo a ser seguido pelo público consumidor.

Também pode ser citada a Copa da Rússia em 2018 em que uma criança, também com deficiência física, realiza o sonho de se levantar e cantar o hino, ajudada pelos jogadores da Polônia. Noticiado pelos jornais como exemplo de superação a ser seguido, o momento é apresentado como um sonho, não pela participação na copa, mas sim pelo fato de ficar de pé, também superando a si própria diante dos moldes do corpo norma.

Na copa do Qatar, em 2022, Ghanim é convidado não só para ser o embaixador desta, como também um dos principais personagens da cerimônia de abertura, na qual ele aparece, se afastando da utopia dramática e robótica do conserto dos corpos, pois caminhando com as mãos conduz a cerimônia questionando se todos seriam bem- vindos

Tal pergunta marca uma das copas mais polêmicas dos últimos tempos, visto as repercussões acerca das discriminações de gênero e LGBTfóbicas – acobertadas pela FIFA -, entretanto, o Qatar entrega o evento mais acessível de todos os tempos, inclusive com recursos de audiodescrição, estádios com possibilidades arquitetônicas para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, além de tecnologias assistivas inéditas. 

Esse fato nos mostra que acessibilidade é fundamental, mas uma vez que não está aliada ao reconhecimento e superação das opressões, as quais, impelem a possibilidade das pessoas com deficiência de usufruírem desses recursos, visto as divisões de classe, a morte das mulheres e pessoas com deficiência da comunidade LGBTQIA+, torna-se apenas mais um recurso de apropriação, naturalização e esvaziamento das pautas urgentes da população PCD.

Então, talvez a resposta para a pergunta inicial seja: não, nem todos são bem-vindos e isso não é apenas no Qatar, diga-se de passagem. Por isso: vale o reconhecimento da representatividade que foge a ótica do conserto e o brilho no olhar dos que sonham e se reconhecem diante da participação de Ghanim em um evento, o qual através do futebol encontra espaço nos sonhos coletivos, mas, sobretudo, vale a crítica de que enquanto houver desigualdade de classe, racismo, morte das mulheres, da população LGBTQIA+ e capacitismo, o corpo deficiente caberá no imaginário social, independente do espaço em que estiver ocupando, apenas como sensacionalismo daqueles que, através dos aplausos da superação, espetacularizam suas vidas, as traduzem como inferior e separam quem pode ou não ser “gente humana”. 

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga