A utilização do terreno do antigo Aeroclube, no bairro do Pina, Zona Sul do Recife, voltou ao debate, que circula há cerca de uma década. Em 2020, a Prefeitura do Recife apresentou o projeto final para a utilização do espaço, que deve contar com equipamentos sociais e com os habitacionais Encanta Moça I e II, com 600 moradias para as famílias das palafitas do Pina, ainda sem previsão de entrega.
No entanto, ativistas sociais e lideranças locais criticam a falta de participação popular efetiva na concepção do projeto, a possível utilização de parte do terreno para o mercado imobiliário e cobram que mais apartamentos sejam construídos para abrigar outras famílias em vulnerabilidade social.
O terreno, que possui 21 hectares, foi desapropriado na gestão do petista João da Costa, sendo atualmente um espaço público. Em 2012, na gestão de Geraldo Júlio (PSB), houve a promessa da urbanização da comunidade do Bode, uma das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) no bairro do Pina.
A comunidade do Bode possui cerca de 25 mil moradores e, de acordo com o levantamento atual da prefeitura, 378 famílias vivem em palafitas, habitações sustentadas por madeiras às margens de um rio ou área alagadiça.
Crise habitacional na capital pernambucana
Atualmente, o município do Recife possui um déficit habitacional de cerca de 71 mil moradias, de acordo com a prefeitura. O cenário é de habitacionais com obras paralisadas e falta de novas aplicações.
Durante o governo Bolsonaro, não houve nenhuma aplicação nova do programa Minha Casa, Minha Vida. Pelo contrário, foi extinto. Nos últimos 19 anos, foram construídas na capital pernambucana 10.072 moradias populares, sendo o maior volume registrado entre os anos 2009 e 2012, durante a gestão do prefeito João da Costa (PT). O número é irrisório perto das mais de 70 mil famílias que não têm moradia digna.
Leia aqui: Triste fim do Minha Casa Minha Vida: como Bolsonaro extinguiu o programa sem alarde
Casa para quem quer casa
O ativista social, gestor público, dirigente do PT e ex-diretor de Habitação no Recife, Felipe Cury, aponta para a falta de transparência quanto ao número de famílias que vivem nas palafitas da comunidade do Bode. “Só vamos saber se esse número é exato quando as famílias começarem a ser removidas, porque esse cadastro nunca foi disponibilizado para a sociedade, nem para as comissões que acompanham o projeto”, pontua.
Sendo este o número correto, os habitacionais serão suficientes para abrigar todos estes. Contudo, não é suficiente para receber todas as famílias impactadas pelo projeto. Das restantes, 168 devem ser destinadas para famílias que estão recebendo Auxílio Moradia, que não puderam ser transferidas para habitacionais da Via Mangue. Assim, das 600 casas, restariam 54.
Está aí o grande gargalo, aponta Felipe Cury. “A gente tem mais de 300 pessoas que moram em área non aedificandi (em casas de alvenaria), que terão que ser removidas para a execução do projeto”, pontua o gestor.
Para o projeto, está prevista, além dos habitacionais, a construção de um Centro Comunitário da Paz (Compaz), de creche, Upinha 24h, e o que deverá ser o maior parque da cidade, com 11,9 hectares. Isso é duas vezes mais que o Parque da Jaqueira, atualmente o maior parque da cidade.
“Eu defendo demais o parque, ele é super importante. Mas se a gente tem mais de trezentos e poucas famílias que vão ter que sair para execução do projeto, porque não fazer mais casas para essas populações?”
A demanda é por mais moradia
Samuel da Costa, liderança local do Pina, é categórico em afirmar que é a favor da urbanização, pois dará uma “nova vida” ao local. Todavia, ele defende a ampliação das moradias. Para isso acontecer, a gestão municipal deve buscar verba estadual ou federal para as habitações - mas a liderança alega não sentir segurança de que isso vá acontecer.
Ele conta que a urbanização irá afetar cerca de mil famílias, que vivem há décadas na comunidade. “A prefeitura alega que elas serão contempladas pelos habitacionais, mas a matemática não fecha! Só Deus sabe quando essas famílias que sobrarem vão ser contempladas por outro habitacional”.
Além disso, ele teme que as famílias precisem ser deslocadas para outros territórios. “Nosso medo é que elas saiam das suas origens. Tem muitos pescadores aqui que vivem disso e podem ter que sair daqui”, afirma.
Ele cita, ainda, um caso que ele define como “estarrecedor” de uma senhora que vive há anos nas palafitas do Pina, dentro da maré. “Essa senhora morava na rua João Bandeira de Melo, número 222. Toda vez que tinha maré alta, a maré derrubava o barraco dela e a gente ajeitava. Até que por último derrubou por completo e ela está sem ter onde morar”, relata.
A senhora, Maria das Graças, está debilitada e morando de favor. Mas a informação é de que ela não será contemplada nos habitacionais. “Ela perdeu o barraco, viveu lá por anos, e a prefeitura diz que ela não será contemplada porque não está morando lá”, conta, indignado.
O Brasil de Fato Pernambuco entrou em contato com a Autarquia de Urbanização do Recife (URB) para saber qual destino a gestão pensa em dar para as famílias que não forem contempladas pelos habitacionais Encanta Moça I e II. No entanto, não obtivemos retorno.
Recife à preço de banana para o mercado imobiliário
Um outro ponto tem levantado críticas quanto à gestão municipal. É a venda de imóveis públicos para a iniciativa privada. O vereador Ivan Moares (PSOL) denunciou, nesta terça-feira (13) em suas redes sociais, o Projeto de Lei (PL) número 46, que lista 15 imóveis para leião com até 40% de desconto.
A maioria destes imóveis está no terreno do Aeroclube. "A Prefeitura diz que não existe terreno disponível para moradia popular na cidade. Mas, como vocês podem ver, pra construir prédio de luxo tem é muito", alegou em suas redes.
O projeto ainda não entrou em votação e os movimentos populares têm mobilizado a sociedade civil através da hashtag #PL446NÃO.
Participação popular
Por fim, a crítica do ativista social e da liderança local vão, também, para a dificuldade da gestão municipal manter um diálogo e uma participação efetiva da comunidade na concepção do projeto.
Desde 2012, há uma cobrança para que haja esse espaço, audiências públicas e plenárias, mas somente no final de 2022, no governo de João Campos (PSB), é que conseguiram marcar três reuniões, focadas nas três áreas impactadas: Bode, Beira Rio e Areinha. No entanto, estas reuniões foram marcadas após todo o projeto estar pronto.
A reivindicação é que a população possa fazer alterações, caso necessário, e possam se enxergar no processo. Ele pontua diversos pontos a serem discutidos, como o pagamento, pela primeira vez, para um projeto habitacional; o envolvimento da Caixa Econômica no processo de seleção das famílias; a necessidade de se pensar em como garantir a fonte de renda dos pescadores; e outros vários itens.
"Deixando claro sempre que aqui não se trata de ser contra o projeto. Ao contrário, a ideia é de concepção mesmo. Mas também que prefeitura entenda que a gente precisa abrir um diálogo efetivo pra fazer essa construção", conclui.
Edição: Vanessa Gonzaga