Com muitas camadas, a violência contra as mulheres negras vai além do feminicídio cujos números só crescem e desafiam especialistas. Somam-se a isso as variadas formas de agressões que, não raro, são banalizadas e, muitas vezes, ignoradas por parte considerável da sociedade.
O racismo e o machismo têm efeitos diversos na sociedade e, sobretudo, nas mulheres negras que sofrem duplamente. Segundo pesquisa divulgada em 2018 no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities mulheres expostas ao racismo têm mais chance de desenvolverem transtornos mentais.
Na busca de compreender alguma dessas várias camadas de violência sobre essas mulheres, o Brasil de Fato Pernambuco conversou sobre a saúde mental das mulheres negras com Veridiana Machado, que é psicóloga, pesquisadora da religiosidade afro-brasileira e integrante da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) (ANPISNEP). Confira:
Brasil de Fato Pernambuco: Veridiana, historicamente as mulheres negras são estereotipadas como fortes, escandalosas, barraqueiras, boas de cama e promíscuas. Como esses estereótipos abalam psiquicamente as mulheres negras?
Veridiana Machado: Eu acho que a gente pode começar pensando um pouco mais sobre esses estereótipos, né? Esses estereótipos aconteceram e acontecem de modo mais cristalizado aqui no Brasil e também nos Estados Unidos, a barraqueira, a mulher raivosa, a doméstica, enfim... Aí Lélia González vai falar daqui do Brasil, vai falar da mulata, vai falar da doméstica. Vai falar dos estereótipos que nós aqui, latino-americanos, especialmente no Brasil, produzimos para essa mulher.
Mas acho que pra gente entender inclusive qual é o impacto que se tem na saúde e no bem-estar das mulheres negras precisamos fazer uma reflexão de como é que chega a ideia de mulher e o conceito de mulher para a mulher negra, porque na realidade não chega. Mulheres, né? Nós chamamos de mulheres, obviamente, mas que não foram, devido ao processo colonial, no processo de escravização, consideradas mulheres para aquela ideia de mulher que era a mulher branca.
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No imaginário do eurocentrismo, na esteira do colonialismo e do racismo é que nossos corpos são impressos, pensando junto com Judith Butler, e essa mulher negra aqui no Brasil não vai partilhar da ideologia do que seria essa mulher eurocêntrica, que é a mulher Afrodite, a mulher feminina, que vai desenvolver diversos talentos, tocar piano etc. Ela é a mulher Anastácia, é a mulher escravizada, é uma mulher que não tem a sua feminilidade reconhecida, não é a mulher que é desejada.
Então, a mulher negra, aqui no Brasil, não é imediatamente mulher, primeiro, ela é negra. E tudo que vem junto com essa expressão “negra”, carregada do racismo, carregada de objetificação, carregada de fetichização, carregada da ideia do que é essa mulher doméstica e domesticável, mulata no sentido de poder ser abusada, de (servir) para reproduzir etc.
Esses estereótipos podem impactar na nossa saúde mental, na saúde mental das mulheres negras, primeiro, quando se cola com esse estereótipo e quando não se faz desse lugar do estereótipo um lugar político, porque existe essa coisa de colocar a favela no lugar de subjugação, mas quando a favela grita “eu sou favela”, isso vira um ato político. Desse lugar que nós mulheres negras temos raiva, como se não pudéssemos ter, porque isso vai afetar a saúde mental no sentido de que esse estereótipo, quando você diz que uma mulher negra é raivosa, por exemplo, é porque se quer silenciar a voz dessa mulher, se quer silenciar a dor dessa mulher, quer silenciar a raiva dessa mulher. Às mulheres brancas é permitido sentimento, né? Mesmo que eles sejam controlados, mesmo que sejam também docilizados.
BdF PE: Essa ideia de que mulheres negras são muito fortes acaba colocando essas mulheres no local de cuidado, inabaláveis quando muitas vezes são elas que precisam de cuidado. Como isso afeta a busca das mulheres negras por cuidados na saúde mental ?
Veridiana Machado: Esse é um outro mito. O mito da mulher negra que é forte e é usado pela branquitude para reafirmar vários antigos estereótipos que vão de algum modo aprisionar a representação dessas mulheres negras e de novo trazer feridas profundas do racismo. A ideia dessa mulher negra forte, pra mim, está muito próxima dessa mulher negra raivosa, no sentido de que a mulher negra raivosa faz o enfrentamento e isso significa que ela é forte. E, do outro lado, a ideia de que ela é forte significa que não vai sentir dor, então ela não precisa falar, é também uma forma de silenciar.
Isso tem uma consequência prática, real, concreta, por exemplo, quando as mulheres estão parindo e não tomam anestesia. Eu falei muito imaginário aqui, mas isso tem uma consequência real, inclusive, quando os homens estupram mulheres negras e acham que elas não sentem dor. Aquilo não é um corpo, aquilo não é uma mulher. E isso vai também promover um silenciamento do próprio coletivo, porque como falei antes, ao se levar essa ideia da mulher raivosa como consciência, na perspectiva de Lélia González, como consciência de si e se reproduz isso, você não busca apoio, você não constrói rede. Isso não é autonomia, né? Isso é silenciamento, é uma estratégia da branquitude para nos silenciar.
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Porque você não busca ajuda, não fala para o outro o que você está sentindo, então você recolhe aquilo em nome desse lugar, dessa fortaleza, desse enfrentamento raivoso. E aí o que poderia e o que deveria promover a quebra disso é justamente essa tecnologia social que vai de encontro a esse lugar da mulher forte ou da mulher raivosa, é o afeto entre as mulheres, o afeto entre a população negra, que é falar inclusive sobre essas dores, falar sobre essas raivas.
Essa ideia de supermulher, da (mulher) forte, vai negar primeiramente um reconhecimento das verdadeiras experiências do que é a feminilidade negra e de que maneira esse racismo no nosso cotidiano vai provocar as dores, o silenciamento dessas emoções e obviamente isso vai ter diversos danos psicológicos. Enquanto não se pensar uma psicologia, uma escuta para essa população olhando pra essas demandas, para esse contexto, para esses estereótipos, a gente não está permitindo que ela fale, a gente não autoriza essa voz.
BdF PE: Segundo pesquisa divulgada em 2018 no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities mulheres expostas ao racismo têm mais chance de desenvolverem transtornos mentais. Como esse duplo preconceito — o racial e de gênero — age sobre as mulheres negras?
Veridiana Machado: Bom, eu penso que além da questão dos transtornos, isso afeta no sentido de cristalizar o lugar que a branquitude aqui no Brasil construiu pra essas mulheres. O transtorno está presente, diversos transtornos estão presentes e é preciso se debruçar sobre isso, mas para além disso, de uma questão de saúde mental, de uma questão diagnosticada, que é real, concreta, no cotidiano, as mulheres negras muitas vezes estão atuando com essa perspectiva de que são fortes. Muitas vezes ratificando esse lugar da mulher negra raivosa e esse não resgate de si e dessas outras tecnologias faz com que a percepção dessas mulheres sobre si se tornem engessadas.
Penso que junto ao transtorno, que é algo grave na perspectiva da saúde mental, da psiquiatria, da psicologia, do campus psi de um modo geral, uma outra consequência é esse engessamento, esse "não sair do lugar", desse lugar que a branquitude construiu.
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Então, quando estou falando que esse não resgate da memória, esse não resgate de referências, afeta não só na perspectiva de produzir transtornos mentais é porque você não alcança nada que você deseja, você simplesmente pode acreditar que ali é um limite, não tem outros horizontes. Pra mim, uma das maiores consequências é essa falta de horizonte, essa ausência de perspectiva.
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BdF PE: Pesquisa do Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (ELSA), feita por professores da USP, revela que as pessoas mais afetadas por transtornos mentais na pandemia no estado de São Paulo foram as jovens do sexo feminino, negras, com menor nível educacional. Esses dados são de São Paulo, mas é possível afirmar que a pandemia de alguma maneira abalou fortemente a saúde mental das mulheres negras? Como você avalia?
Veridiana Machado: Bom, eu acho que tem vários caminhos pra gente pensar nisso. Tem as mulheres negras que foram também afetadas pela pandemia e que estavam lá na ponta, a maioria das técnicas de enfermagem, de enfermeiras, muitas delas são negras e foram as maiores afetadas naquela condição de trabalho. Tem as mulheres negras que trabalham como vendedoras, que trabalhavam, vou pensar aqui no estado da Bahia, por exemplo, vendendo acarajé, que trabalhavam com seus restaurantes, seus bares, tudo isso foi suspenso, então causou muito sofrimento e a gente precisa lembrar que nacionalmente as mulheres negras é que dão conta, que são as responsáveis pelas famílias aqui no Brasil, não são os homens.
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Muitas mulheres negras assumem essa responsabilidade nas suas casas e essa responsabilidade não diz respeito a um recurso que muitas vezes não está relacionado a um trabalho formal e sim ao trabalho informal e esse foi o maior impacto na minha perspectiva. Se a gente observar, na pandemia, o número de pessoas em situação de rua aumentou fortemente e a maioria dessa população que estava na rua era também a população negra, eram pessoas que, mesmo tendo uma casa, era mais possível conseguir sobreviver estando na rua, pedindo ou fazendo qualquer outro tipo de atividade ali ou recebendo doações, sopas, das perspectivas assistencialistas, do que estar em casa.
Estou falando desses exemplos práticos, mas tudo isso está relacionado à saúde mental. Saúde mental não é só a saúde psíquica, a saúde mental está relacionada a um bem viver, ao direito à casa, ao direito à alimentação, ao direito a questões básicas e, quando você não tem isso, significa que não se tem dignidade e quando essa dignidade lhe é retirada, vai ter esse impacto na saúde mental. Então, penso que o maior impacto da pandemia sobre as mulheres negras está relacionado ao fato dessas mulheres negras terem conquistado essa autonomia, mas uma autonomia que está relacionada a esse trabalho informal e que na pandemia, como tudo, foi suspenso, não se podia exercer esse tipo de trabalho, esse tipo de comércio, e isso teve um impacto muito grande porque elas são as responsáveis por essas famílias.
BdF PE: Veridiana, você chega num ponto bem interessante para essa última pergunta então: como pensar estratégias coletivas de cuidado e bem estar para as mulheres negras? Entendendo que esses problemas vêm de questões estruturais.
Veridiana Machado: Exatamente, penso que a produção de políticas públicas, o debate sobre violência de Estado, porque o Estado tem violentado e tem violado direitos dessa população, especialmente os direitos de mulheres negras que ainda são a base de toda a produtividade, de tudo o que sustenta o nosso sistema capitalista, sustenta o nosso trabalho e o que sustenta as mulheres brancas ainda... Mas tem uma violência de Estado aí que é recorrente, atuante, que vai violar esses direitos, então uma das estratégias é o enfrentamento, é a construção de coletivos políticos como esse ao qual eu faço parte e que realiza esse enfrentamento com o Estado, porque o Estado precisa se responsabilizar por isso.
É óbvio que existem diversas iniciativas que tentam dar conta de quando esse braço do Estado não alcança, mas alcança para promover violência. Por que o braço do Estado não pode alcançar para promover o que é o dever do Estado? Que é dar dignidade, que é atender ao que diz a nossa Constituição. Então, uma das estratégias na minha perspectiva é: uma permanente e constante discussão, e em todos os campos, em todas as áreas de atuação, sobre o racismo. Porque o racismo não é um recorte, 56% da população brasileira é de negros e negras e não pode ser tratado como recorte, como um detalhe a ser pensado perifericamente, é preciso ser central. Quando se fala do racismo estrutural, ele é a espinha dorsal das relações sociais brasileiras, das relações pessoais, interpessoais aqui do Brasil. Isso é real, é concreto e precisa ser olhado como espinha dorsal.
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Em todos os campos o enfrentamento e o debate sobre o racismo é necessário, para que a gente possa construir organizações políticas que façam esse enfrentamento também em todos os campos. A psicologia é uma das profissões extremamente elitizadas, extremamente distante de determinados temas, um discurso de neutralidade científica. Obviamente hoje isso já tem se modificado bastante, existem alguns coletivos de psicólogos negros e não negros que tem uma uma atuação e uma prática política antirracista no seu cotidiano. Pra dizer que mesmo essa ciência que foi dita como neutra, como se não se devesse se pronunciar, como se tivesse que ficar em cima do muro, é para dizer que se a psicologia também precisa de lado. Como a medicina precisa de lado, como todos os campos precisam de um lado. Do lado da democracia, né? O lado que atenda a dignidade de todas as pessoas.
Edição: Glauco Faria