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Ameaçada de perder comércios, comunidade de Maria Farinha luta pela permanência na praia

Acesso ao mar está fechado desde agosto de 2021; empreendimento imobiliário de alto padrão será construído no local

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Bares, restaurantes e vendedores ambulantes são alguns dos impactados pelo fechamento do portão de acesso à praia. - Salve Maria Farinha

Derramamento de óleo. Pandemia de covid-19. Pedido de desapropriação da região. Portão de acesso à praia fechado. Essas foram algumas das situações que dificultaram a vida de comerciantes e moradores de Maria Farinha, praia localizada no município de Paulista, na Região Metropolitana do Recife. 

Se normalmente o mês de janeiro é um período de aquecimento das vendas nos bares e restaurantes, atualmente os mais de 70 estabelecimentos comerciais dessa praia, de acordo com a organização Salve Maria Farinha, estão lutando para permanecer no local e garantir os meios de vida dos seus donos e demais trabalhadores.

Isso porque, desde o fim de agosto de 2021, a empresa proprietária do terreno próximo a faixa de areia fechou o portão de acesso à praia para turistas. Desde março de 2022 o portão também foi fechado para moradores, que estão na região há mais de 40 anos. Agora, as pessoas precisam caminhar mais de 1500 metros para chegar ao local.

Área privada e empreendimento

A área de mais de 2000 hectares, onde funcionava a fábrica de cimento da Poty e atualmente fica a Mata da Poty, que abriga um remanescente da Mata Atlântica, pertence ao grupo Votorantim.  

O fechamento do portão aconteceu com a alegação de interesses privados por parte da empresa, já que será construído um empreendimento imobiliário voltado para 150 mil pessoas das classes A e B, em uma parceria público privada entre a Votorantim e a Prefeitura de Paulista. 

O empreendimento veio a público em 2022. Em notícia veiculada no site da Prefeitura de Paulista, afirma-se que este é um projeto "arrojado que vai impulsionar a economia do Litoral Norte com investimentos na ordem de R$ 9 bilhões, gerando 100 mil empregos". A primeira etapa do projeto é justamente a construção do Condomínio Residencial Poty, em Maria Farinha.

Em nota de posicionamento, a Votorantim afirma que "o terreno de propriedade da empresa no município de Paulista-PE encontra-se em processo de loteamento para construção de um empreendimento imobiliário que será socioambientalmente sustentável. O projeto já está protocolado junto à Prefeitura de Paulista e encontra-se em processo de tramitação. Além da entrega de quatro acessos públicos, contempla ainda a destinação de áreas privadas para usos públicos, como praças, áreas verdes, sistema viário e estacionamento público, além de promover desenvolvimento, geração de emprego e de renda e o fomento ao turismo no município".


Reunião, em maio de 2022, com empresários e Prefeitura de Paulista para tratar do empreendimento. / Prefeitura de Paulista

Moradores resistem à privatização da praia

Moradora de Paulista há mais de 40 anos, a artista plástica e educadora Karina Agra tem um ateliê em Maria Farinha, ao lado do qual fica o bar do seu tio. Ela explica que a luta pela permanência dos moradores e comerciantes locais não é recente. A prefeitura de Paulista pediu desapropriação da área em 2018. “Nesse ano começou a celeuma toda. Mas o processo começou com uma denúncia anônima em 2005 no Ministério Público Federal de degradação ambiental”. 

Karina argumenta que essa denúncia poderia beneficiar a empresa dona da área. “Ela foi muito bem orquestrada junto também com a iniciativa privada. Foi muito conveniente para a própria Votorantim esse processo todo, ajudando a pressionar a saída dos ocupantes daqui, que é uma faixa de 700 metros indo Veneza Water Park até a Igreja da Conceição”, destaca. 

Fundador da Salve Maria Farinha, instituição que atua com em diversas frentes para mobilizar o poder público em favor da população, o administrador Fernando Macedo explica que havia relação da empresa com a comunidade durante o funcionamento da fábrica de cimento. “Ela tinha uma escola lá dentro que era uma espécie de devolução para a sociedade da exploração do local. Era uma escola muito boa, de acordo com as pessoas que estudaram lá”, relata. 

Aos poucos essa relação foi ficando frágil e algumas medidas tomadas prejudicaram a população e o próprio local, como explica Fernando. “O terreno que compõe a parte da praia tinha um conjunto de casas com arquitetura antiga que era Patrimônio Histórico. Em determinado período, a empresa passou a alegar que as casas estavam sendo depredadas e conseguiram demolir as seis”, relata. 

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O terreno passou por um processo de sucateamento, mas a comunidade conseguiu se estabelecer no local e desenvolver o turismo. “A sentença do processo de 2005 saiu em junho do ano passado. Ela inocentou a gente da responsabilidade de degradação ambiental. A responsabilidade ficou toda para a prefeitura, que também está como ré neste processo e não participou de nenhuma audiência”, explica Karina. 

A artista conta ainda que a sentença indicou a inscrição de moradores de Maria Farinha em situação de vulnerabilidade no próximo projeto habitacional da prefeitura, mas nenhum tipo de indenização para comerciantes. “Foi aí que a gente começou a lutar em 2018. Inclusive fizeram algumas reuniões e a prefeitura apareceu lá. A gente falou que quer permanecer no local, queremos a requalificação da orla. A proposta deles é colocar uma licitação estadual para aquela área. A gente conseguiu suspender até o momento, em atuação junto com a Defensoria Pública da União”, explica Karina.


Comunidade em reunião com defensor público./ Salve Maria Farinha

A primeira proposta da prefeitura era o pagamento de uma indenização de cinco mil reais para comerciantes e dez mil reais para moradores. “Nós lançamos uma contraproposta de indenização de 70 mil reais, em reunião feita com a DPU, e da qual outros entes também participaram, como a diretoria de fiscalização da Agência Estadual de Meio Ambiente - CPRH”, conta Fernando. O valor não foi aceito pela prefeitura, que indicou pagamento de 20 mil reais e voltou a fazer um recadastramento para incluir as famílias no plano de moradia.

Fernando reforça que a comunidade também quer participação no projeto, “para que ele seja voltado para a sociedade, já que esse espaço abriga vida silvestre, resquício de Mata Atlântica, de manguezal, áreas de proteção que fazem limite como o Parque dos Manguezais Vale do Acaraú e APA estuarina do Rio Timbó”.

Em resposta à reportagem do Brasil de Fato Pernambuco, a Prefeitura de Paulista, por meio da assessoria da comunicação, afirmou: “Quanto à desapropriação, o governo municipal informa que realizou um levantamento e constatou 70 construções irregulares, que não podem ocupar o espaço de faixa de areia, não cabendo nenhum tipo de indenização por se tratar de área pública federal. Os locais em questão tiveram a reintegração de posse determinada por decisão judicial”.

Sobre as demais construções, afirma: “No que diz respeito ao recadastramento, comunicamos que a Prefeitura está coletando as informações sobre o perfil e a quantidade de pessoas que estão exercendo atividades no local, para realizar a negociação de retirada, em cumprimento ao estabelecido na decisão judicial”. 

Acesso ao mar segue fechado

Enquanto a comunidade tenta negociar com a prefeitura e sensibilizar a Votorantim - já realizaram protestos, petições online, tentativas de audiência pública -, o acesso à praia de Maria Farinha segue fechado. Moradores e visitantes precisam caminhar cerca de 1500 metros para chegar ao local, mesmo o Plano de Gerenciamento Costeiro prevendo que é preciso ter acesso ao mar a cada 250 metros. Fernando relata que “a população está isolada numa área enorme. Os moradores estão sendo empurrados contra a maré, porque não têm acesso. O mar está avançando cada vez mais e não está tendo um acompanhamento solidário a essas pessoas”.


Apesar de lei prevê acesso ao mar a cada 250 metros, população anda quase 2 km para chegar em Maria Farinha. / Salve Maria Farinha

“Só temos o acesso próximo à igreja da Conceição. Isso enfraqueceu mais de 90% o movimento no comércio local, além de ter ficado perigoso. Se uma pessoa passar mal ali, não tem como ser socorrida”, compartilha Karina.

Questionada sobre essa distância de acesso ao mar, a Prefeitura de Paulista confirma: “a Prefeitura do Paulista, através da Secretaria de Desenvolvimento Urbano, Tecnologia e Meio Ambiente, esclarece que a lei municipal estabelece 250 metros na entrada/saída em áreas urbanizadas”. 

Em nota, a Votorantim afirma que: "Neste contexto [da construção do empreendimento imobiliário], o fechamento do acesso foi realizado em conformidade com a legislação e no exercício do seu direito de propriedade, realizado de forma gradual após comunicações oficiais e diálogo com órgãos públicos, mantendo o acesso de pedestres pela propriedade privada por 6 meses, entre setembro/2021 e março/2022. Neste período foi permitido que as barracas que funcionam na praia, próximas ao terreno, pudessem se adaptar, inclusive com a sinalização para que a população retomasse a utilização dos acessos públicos da praia, todos estes preservados, havendo, inclusive, acesso público e irrestrito a menos de 70 metros do limite da propriedade da empresa".

Fernando espera que a Votorantim recue. “Como a Votorantim é uma empresa que negocia na Bolsa de Valores e que tem a responsabilidade ambiental associada a sua marca, a gente espera que ela recue, que a gente ecoe mais alto essa voz e que isso interfira no processo e eles abracem a causa para a sociedade trazendo desenvolvimento para o povo”, finaliza. A reportagem do Brasil de Fato Pernamabuco não conseguiu retorno da Votorantim até o fechamento dessa reportagem. 

Karina reforça que a comunidade quer ser respeitada e contemplada com uma requalificação do local. Ela questiona: “Por que não fazer uma parceria para que os comerciantes possam permanecer de forma harmônica? A gente não é contra o desenvolvimento, a gente quer um processo justo”.

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Edição: Vanessa Gonzaga