Aos 28 anos de idade, Ana Do Vale, uma artista visual não-binária com deficiência, não consegue frequentar bares e espaços de lazer e cultura em João Pessoa (PB), onde vive. "Eu simplesmente não chego nos lugares", é o que relata. Estudante de Artes Visuais na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ela aponta a contradição de ser convidada para exposições de arte e não conseguir acessar os espaços em que elas acontecem.
Por essa vivência, Ana conta os dias com empolgação para um evento pioneiro que acontece em Recife neste 18 de março: uma festa pensada para pessoas com deficiência e LGBTs. Será a celebração dos três anos do Vale PCD, primeira ONG voltada para o protagonismo PCD LGBT no Brasil.
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Priscila Siqueira, psicóloga recifense e uma das fundadoras da ONG, está acostumada a trabalhar com a idealização de espaços acessíveis em eventos culturais. Contudo, ela qualifica a maioria dessas ações como uma “redução de danos”. São espaços pensados para pessoas sem deficiência e que reservam um espaço para incluir elementos acessíveis - nem sempre da forma ideal.
Ela pontua onde está a diferença na proposta deste evento. “Geralmente, se faz algo para o público geral e se coloca uma acessibilidade em um espaço reservado. Aqui, a nossa intenção é que todo mundo possa acessar todos os espaços e curtam juntos". A celebração também coincide com seu aniversário, por isso, ela decidiu juntar tudo em uma grande festa inclusiva em um bar local e parceiro.
A psicóloga defende a importância de garantir espaços em que pessoas com deficiência não sejam infantilizadas, como vê com frequência em bloquinhos de carnaval, uma programação mais familiar. “Não que isso seja ruim, mas a gente também quer o direito de ter algo mais adulto, algo mais privado. Aquele ambiente mais jovem de paquera, pra gente se soltar e ser quem a gente é”, sinaliza.
Menos barreiras e mais inclusão
O principal fator que torna o bar local acessível são as poucas barreiras: todo o piso é plano; não há primeiro andar, é repleto de rampas e bem iluminado; o banheiro também é acessível e, geralmente, PCD entra gratuitamente com acompanhante.
Além disso, foram pensadas estratégias como abafadores de ruídos e intérpretes de libras para garantir a comunicação com pessoas surdas. Priscila também enfatiza a importância da acessibilidade atitudinal, isto é, garantir que a equipe do bar saiba receber pessoas com diferentes tipos de necessidade, sem capacitismo. “Por exemplo, se a gente receber uma pessoa cega, vamos saber como dar suporte e como descrever o espaço", explica.
A programação musical também foi pensada para ser diversa. Por isso, o line up conta com artistas da cena LGBTQIA+ e com a primeira drag amputada do Brasil, Nina Poison. Ela se tornou PCD há pouco mais de 2 anos e afirma ter passado por vários obstáculos depois disso. “Tem sido uma reviravolta na minha vida. Participar de um evento desse, colocando minha arte e o meu som, é importantíssimo”, pontua.
Com mobilidade reduzida aos 32 anos de idade, Nina consegue manter várias das atividades que fazia, porém se preocupa com a acessibilidade para pessoas com necessidades diferentes das dela. “Eu enfrento obstáculos em certos eventos, que têm escadas e não têm elevador, não têm sinalização no chão, imagina quem tem a mobilidade mais reduzida ainda? Ainda precisamos evoluir muito”, defende.
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Fortalecimento de comunidades
Ana, do início desta matéria, enxerga o evento como uma importante ferramenta para criar uma comunidade em que as pessoas se sintam confortáveis e seguras. Filha de um casal lésbico, a artista foi introduzida desde cedo no debate sobre gênero e sexualidade. Já em relação à deficiência, foi necessário um tempo para que ela se reconhecesse enquanto PCD. "Foi uma construção", relata.
A estudante tem uma doença rara progressiva e possui sintomas de ordem visual e física desde a infância, que foram se agravando ao longo dos anos. Hoje, ela usa uma cadeira de rodas motorizada, oferecida pela universidade, para se locomover.
Em João Pessoa, ela não consegue usufruir dos espaços de forma autônoma. "No máximo, quando consigo chegar, vou ficar presa em algum lugar, porque não vou conseguir circular no espaço", desabafa.
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Por essas e outras questões, incluindo a pandemia, o círculo de convivência social de Ana foi diminuindo cada vez mais. Foi quando ela sentiu a necessidade de encontrar acolhimento em pessoas com vivências parecidas. Em 2020, através da internet, ela conheceu Priscila Siqueira, que além de se tornar grande amiga, lhe apresentou o Vale PCD.
Após anos sem ir ao Recife, muito por conta da redução da mobilidade, Ana se planejou com sua mãe e a companheira dela para estar nesse evento. "Eu estou extremamente feliz. Vai ser a primeira vez que vou ver a Priscila e que vou ver vários dos PCDs que eu conheci através da internet", partilha.
Entusiasta do maracatu e do coco, Ana relata estar tão empolgada, que pouco importa que os gêneros musicais do espaço não sejam seus preferidos. "Vai ser histórico e lindo. Só de pensar em tanto PCD e LGBT junto, me dá um quentinho no coração".
PCD LGBTQIAP+ PARTY: VALE TUDE
O evento acontece no Paju Bar, em parceria com a ONG Arco, no dia 18 de março, a partir das 18h. O espaço fica localizado na Avenida Manoel Borba, 693 Recife, Brasil.
O produtor e coordenador da equipe do bar afirma que o conceito de representatividade já está desde a concepção do próprio nome, "pajubá", que é um dialeto utilizado pela comunidade LGBT e elementos de outros idiomas, como o iorubá. "Esse convite, de tamanha responsabilidade, materializa o que estamos construindo desde o nosso nascimento. Somos um espaço para que todes entrem e se sintam seguros e todes os corpos sejam tratados e respeitados e atendidos por igual".
A entrada é gratuita até às 20h. Contudo, haverá uma lista PCD e uma lista trans que extende essa entrada por mais tempo. Quem fizer parte de um desses públicos, deve enviar seu nome por mensagem para o instagram do @pcdvale ou da @ong.arco até o dia 17 de março.
Edição: Elen Carvalho