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Dez anos de tensão: Cristianismo x Cristandade

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"Sem dúvida, atualmente, nos ambientes católicos, respira-se uma liberdade e energia renovadora". - Alberto Pizzoli / AFP
A Cristandade substituiu o Cristo crucificado e nu pelo Cristo Rei.

No domingo, 19 de março, completam-se dez anos do início do ministério do papa Francisco como bispo de Roma e primaz das Igrejas da comunhão católico-romana no mundo. Por todo o mundo circulam análises sobre o que, durante este tempo, o papa Francisco deu à Igreja e ao mundo como avanços e também sobre as possíveis lacunas de sua atuação.   

A realidade da Igreja Católica, em Roma e no mundo, pode ser olhada a partir de ângulos e critérios diversos. Sem dúvida, atualmente, nos ambientes católicos, respira-se uma liberdade e energia renovadora, que não havia em 2013, quando Francisco assumiu. Finalmente, depois de João XXIII, um papa volta a dialogar com a humanidade, sem ser para falar sobretudo de moral sexual, ou reafirmar os velhos dogmas. Além disso, nestes dez anos, nenhum teólogo ou teóloga foi condenado/a pelo Vaticano. E, pela primeira vez, desde séculos, grupos católicos, padres, bispos e até cardeais criticam abertamente o papa e não sofrem nenhuma punição. 

O papa Francisco retoma e busca atualizar as principais intuições do Concílio Vaticano II, antes rejeitadas pelos papas e por amplos setores da hierarquia. Ele valoriza as dioceses, não mais como filiais de uma multinacional e sim como comunhão de Igrejas. Para fortalecer esta comunhão de todas, Francisco lança a proposta da Sinodalidade, como modo normal da Igreja ser. Redefine a missão como serviço ao mundo e a partir dos mais empobrecidos. São conquistas importantíssimas. No entanto, só se realizam a partir de uma mudança de paradigma. Supõem a superação do modelo de Igreja-Cristandade, no qual a Igreja é vista como hierarquia clerical, com prestígio e poder paralelo aos poderosos do mundo. 

Na América Latina, durante séculos, conhecemos a Cristandade colonial. Ela legitimou e abençoou a conquista e a colonização. Atualmente, ainda mantém elementos de pensamento e ação de tipo colonial. Recoloca dentro da Igreja elementos teológicos e espirituais da religião dos sacerdotes de Jerusalém no tempo de Jesus e os mistura com roupas e estruturas da antiga religião romana, que o Cristianismo substituiu. 

A Cristandade reinterpreta os evangelhos a partir da ótica da religião que Jesus denunciou como hipócrita e desumana. Prega um Deus todo-poderoso, amigo dos que se submetem à sua lei e cruel para os que não lhe agradam.  É um Deus que reis e rainhas podem se apresentar como representantes dele. No passado e até hoje, em nome dele, ainda há patriarcas e bispos que abençoam armas e defendem guerras.   

A Cristandade substituiu o Cristo crucificado e nu pelo Cristo Rei.

Ao povo, reserva apenas devocionalismos barrocos e superficiais. 

Para essa Igreja-Cristandade, a Igreja deve ser só religiosa e espiritualista. No entanto, esses mesmos padres e bispos defendam governantes de direita que, com armas na mão, gritam: “Deus acima de tudo”. Mesmo grupos evangélicos e pentecostais sonham em ver suas Igrejas dominando o país e este ser governado, não pela Constituição e sim pela Bíblia, interpretada ao pé da letra, de acordo com os gostos de seus pastores.  

Uma Igreja que se olha como Cristandade não pode aceitar pastores assim. Como poderia aceitar as propostas do papa Francisco? Sinodalidade, sim, mas contanto que se garanta a Hierarquia. 

No evangelho, Jesus afirmou: “Na casa do meu Pai, há muitas moradas” (Jo 14, 1). A diversidade entre conservadores e progressistas sempre existiu e pode enriquecer a catolicidade das Igrejas. O que não ajuda é quando o conservadorismo é pretexto e arma para impedir a profecia do evangelho. 
 

Edição: Elen Carvalho