Pernambuco

DENÚNCIA

Moradores de prédios interditados enfrentam ameaças de saque, burocracia e lentidão da Justiça

Os prédios caixão, como os do Conjunto Beira Mar, têm um risco de desabamento 32 vezes maior do que o admissível

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Um levantamento do Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep), realizado em 2008, identificou 245 prédios ameaçados no município do Paulista - Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Desde que o bloco D7 do conjunto Beira Mar, no Janga, veio abaixo na sexta-feira passada, a Defesa Civil do município do Paulista está fazendo uma força-tarefa para vistoriar todos os prédios do conjunto. São 29 blocos do tipo caixão e nove de pilotis. Só neste últimos dias foram mais 17 blocos interditados, somando 18 interdições no conjunto. O órgão quer vistoriar todos os blocos do residencial e ainda não há previsão de quando o trabalho deve terminar. 

A professora Rosângela Ferreira soube da interdição do prédio onde mora à tarde, quando estava na rua à procura de uma casa para alugar. Moradora há 32 anos do bloco C15, ela guarda vários laudos de vistorias de anos anteriores. “Tem um da seguradora SulAmérica que já apontava alto risco de que o prédio ruísse, isso em 2013. A última vez que a Defesa Civil do município veio aqui foi em 2019 e apontou que o prédio estava comprometido, mas indicou apenas manutenção. Demorou demais para voltar e agora há muitas rachaduras, infiltrações. O piso está oco. Hoje disseram que o prédio estava em um risco tão alto quanto o que caiu no bloco D”, contou a professora.

Os servidores da Defesa Civil já colocaram uma placa de interdição no prédio dela e afirmaram que ninguém poderia dormir mais no prédio, mas deu um prazo de até 20 dias para a entrega do laudo e da desocupação total. Boa parte dos moradores do D15 já se mudou. Rosângela foi uma das poucas que ficaram.

O medo de Rosângela agora é de que os prédios interditados nesta semana fiquem sem segurança. “Se não colocarem vigias, vão entrar e saquear tudo. É uma certeza. Hoje vou dormir na casa da minha filha, mas lá é pequeno, não tenho como levar meus móveis. Se não tiver segurança, amanhã vou chegar em casa e não vai ter mais nada”, lamentou a professora. Até às 19h, ela estava no prédio interditado, sem saber se deixava tudo que tinha lá, sem vigilância. “Eles dizem para a gente sair pra resguardar a vida. Mas deixam a gente completamente sozinhos, sem ter onde guardar nossas coisas, que demoramos anos de luta para conseguir ter”, reclamou. 

Em entrevista para a Marco Zero o prefeito do Paulista, Yves Ribeiro, jogou a responsabilidade em evitar novas ocupações para a seguradora, que seria a SulAmérica. “A justiça está cobrando que a empresa faça essa vigilância. A empresa é que tem essa obrigação e recursos para isso. Os moradores desses prédios pagaram [o seguro]. A prefeitura deu caminhão e transporte para fazer a mudança”, afirmou. 

Presidente do sindicato dos vigilantes de Pernambuco, Clésio Sales deu entrevista à TV Tribuna e afirmou que não há condições de que os vigias contratados pela seguradora SulAmérica – que, por decisão judicial, há anos faz a vigilância de outros prédios do conjunto – consigam conter qualquer tentativa de ocupação dos prédios desocupados. Ele falou que são poucos vigilantes, que trabalham em condições precárias e que o sindicato da categoria já fez denúncias ao Ministério Público do Trabalho contra a empresa. 

Enquanto a prefeitura joga a responsabilidade para a Sulamérica e a Sulamérica se esquiva dessa responsabilidade, os moradores do Conjunto Beira Mar seguem abandonados. 

Ainda sem vigilância nos prédios recentemente interditados, ainda sem laudo e também ainda sem auxílio aluguel, a situação segue tensa no local. Em dois edifícios do bloco C, a Compesa cortou o fornecimento de água para evitar mais riscos com caixas d’águas e cisternas. Revoltados, moradores que ainda estão nos prédios jogaram pedras no carro da Compesa. Somente os moradores mais pobres, que são inscritos no CadÚnico e que recebem menos de meio salário mensal estão sendo cadastrados para entrar no auxílio aluguel da prefeitura.

O prefeito Yves Ribeiro também afirmou que a prefeitura não vai arcar com eventuais custos da demolição dos prédios. E que vai esperar o resultados dos casos na Justiça, muitos parados desde 2019. “Não podemos ser acima da Justiça. Os promotores estão cobrando e a Justiça está interessada em resolver essa situação. Existe uma comissão formada para isso, com três juízes estaduais e um federal, o chamado Núcleo 4.0, que está acompanhando passo a passo essa situação”, afirmou. 

Ele ainda informou, durante entrevista à TV Globo, que o município entrou hoje com uma ação na Justiça requerendo que a SulAmérica e/ou a Caixa Econômica Federal façam a demolição de todos os prédios que estão interditados. Uma comissão formada pelos três senadores de Pernambuco mais o deputado federal Carlos Veras (PT) vai se reunir em Brasília na próxima semana com a seguradora e a Caixa Econômica Federal, informou o prefeito. 

Porque o laudo é importante

O laudo da Defesa Civil que Rosângela tanto quer é muito importante para os processos que a grande maioria dos moradores do Conjunto Beira Mar move contra a seguradora SulAmérica e a Caixa Econômica Federal. Desde 2008, quando o Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep) identificou os riscos de prédios do tipo caixão, centenas de proprietários de apartamentos do Conjunto Beira Mar entraram na Justiça para conseguir o dinheiro do seguro. Antes mesmo, em 2004, um dos nove edifícios de pilotis do conjunto foi desocupado por oferecer riscos. Até hoje, muitos moradores ainda não receberam a indenização. 

Com o laudo de interdição do órgão público, fica mais fácil para os moradores conseguirem pelo menos o auxílio aluguel. “O laudo da Defesa Civil pode demorar um pouco. Porque tem que fazer a análise do solo, do concreto, da construção. Esse laudo, dizendo que está interditado, dá direito ao cumprimento de tutela antecipada. Ou seja, os proprietários podem conseguir com a seguradora SulAmérica o pagamento do auxílio aluguel, até que o caso seja julgado”, explicou a advogada Aldenize Nunes, que tem ações em outros prédios caixão do Grande Recife. 

O auxílio aluguel é definido caso a caso, mas para os proprietários de imóveis do conjunto Beira Mar costuma ficar entre R$ 600 e R$ 1,5 mil. “A Caixa Econômica Federal foi quem financiou, mas a SulAmérica foi quem segurou o Conjunto Beira Mar. Em tese, quem deveria ter de pagar é a seguradora. Inclusive já tem dinheiro bloqueado da SulAmérica para fazer esses pagamentos, mas a Justiça também é uma loteria: para uns demora décadas, para outros sai logo”, diz.

Moradores precisam de laudo da Defesa Civil para obter auxílio aluguel. Crédito: Arnaldo Sete/MZ

Em nota à Marco Zero, a SulAmérica nega responsabilidade pelos prédios do Conjunto Beira Mar. “A empresa explica que não é proprietária ou seguradora do prédio. Sua participação, assim como de diversas outras seguradoras, foi como prestadora de serviços na operação de apólice pública do Seguro Habitacional do Sistema Financeiro de Habitação (SH-SFH). Esse seguro habitacional é suportado pelo governo federal, por meio do Fundo de Compensação e Variações Salarial (FCVS), administrado desde o ano 2000 pela Caixa Econômica Federal (Caixa), responsável pelas questões legais relacionadas a esse seguro habitacional”, diz trecho da nota (confira a nota completa no final desta matéria).  

Apesar de fazer vistorias constantes nos prédios do Beira Mar ao longo das últimas décadas, a empresa afirmou, na nota enviada à MZ, que vistoria os prédios “apenas para atender às melhores práticas de governança”. 

A situação dos conjuntos habitacionais é um emaranhado ainda mais difícil porque o pagamento do seguro é, prioritariamente, para a recuperação dos edifícios. “Mas em um prédio com 30 e tantas famílias, uma parte pega o dinheiro da indenização e quer reestruturar, outros pegam e saem do prédio. Não adianta. É um problema muito grande”, diz Aldenize.

Por isso, há prédios, que não estavam interditados pela Defesa Civil, mas onde os proprietários ganharam ou esperam na Justiça a indenização, alegando vício de construção. E muitos apartamentos que foram repassados ou alugados para outras pessoas, além dos prédios descoupados que são reocupados por outras famílias. Um problema que escancara o défiti habitacional de mais de 360 mil famílias em Pernambuco.

A questão da responsabilidade das seguradoras – além da Sulamérica, há prédios tipo caixão segurados pela Caixa Seguros e outras seguradoras – está no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), sem prazo para julgamento. “O que acontece muito é a litigância de má fé, que é quando você começa a interpor recursos quando já existe um entendimento sedimentado. Tem processos que você vê, já na esfera recursal, a Caixa Econômica aparecer com uma nova tese. Por exemplo, recentemente a Caixa Econômica Federal, que passou décadas dizendo que não tinha interesse no pleito, começou a aparecer nas audiências e dizer que era parte interessada. E o que acontece? Se é a Caixa Econômica é na Justiça Federal. Aí, o processo começa todo novamente, desta vez na  Justiça Federal”, reclama o advogado Kaio Damasceno, que é secretário de assuntos jurídicos do Paulista. “Com a tragédia que aconteceu aqui no Paulista, esperamos que a Justiça seja mais célere”, completa.

Desabamentos já mataram 54 pessoas no Grande Recife

Um levantamento do Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Itep), realizado em 2008, identificou 245 prédios ameaçados no município do Paulista. Sendo que 70% eram do tipo caixão e 30% do tipo pilotis. Naquele ano, um prédio foi interditado em Arthur Lundgren II e outro em 2018, o bloco D7, que desabou parcialmente na última sexta, matando 14 pessoas. 

Os prédios do tipo caixão viraram um perigo para a população e uma dor de cabeça para as prefeituras. Construídos a partir da década de 1970 no Brasil, espalharam-se pelas periferias do Grande Recife nas décadas seguintes, a maioria vendido para habitação popular, com financiamento dos programas da Caixa Econômica Federal. Eram baratos e nem sempre tinham fundações. Mas logo se percebeu que eram um perigo. 

O primeiro acidente registrado em prédios do tipo ocorreu ainda na década de 1970, quando o edifício Giselle, em Jaboatão dos Guararapes, ruiu em 1977, matando 22 pessoas. Desde então, foram mais 16 acidentes, que resultaram na morte de 54 pessoas, segundo dados do ITEP. Neste ano, além do bloco D7, houve também o desabamento do Edifício Leme, em Olinda, onde seis pessoas morreram. 

Estudo do ITEP, atualizado neste mês, identificou que existem cerca de 5,3 mil prédios e que 106 mil habitantes do Grande Recife vivem nessas construções. Realizado pelo professor Carlos Wellington Pires Sobrinho, doutor em Engenharia Civil pela Universidade do Porto, em Portugal, o estudo afirma que o risco de ruína de um prédio construído com a técnica de alvenaria resistente – como é chamada a técnica dos prédios-caixão – é de 1 prédio para cada 312. Na engenharia civil, o risco de ruína admissível é de 1 a cada 10 mil construções. Ou seja, os prédios caixão têm um risco 32 vezes maior do que o admissível. 

O desabamento brusco, sem aviso, como o que ocorreu no bloco D7, é uma característica dos acidentes com os prédios tipo caixão, por conta da “supressão de cintas, associada a lajes nervuradas, qualidade dos componentes e a fundação não aterrada”, aponta o relatório. 

No estudo, o professor Carlos Wellington se mostra contra a demolição desses prédios e aponta caminhos para a recuperação dessas moradias. ”A demolição agride o meio ambiente, gera muito entulho e um vazio urbano ad eternum”, diz o documento. “O Governo Federal publicou a medida provisória 1162 [em fevereiro deste ano] que possibilita que as pessoas destas edificações (certamente enquadradas nas classes de baixa renda) possam utilizar recursos federais nestas ações de reforço. Os Municípios e o Estado deveriam capitanear projetos com este fim. O ITEP possui um Contrato de Gestão com o Governo Estadual que pode facilitar este apoio”, afirma.

  • Nota completa da Sulamérica

“A SulAmérica lamenta profundamente o ocorrido no Conjunto Beira-Mar, em Paulista (PE). 

A empresa explica que não é proprietária ou seguradora do prédio. Sua participação, assim como de diversas outras seguradoras, foi como prestadora de serviços na operação de apólice pública do Seguro Habitacional do Sistema Financeiro de Habitação (SH-SFH). Esse seguro habitacional é suportado pelo governo federal, por meio do Fundo de Compensação e Variações Salarial (FCVS), administrado desde o ano 2000 pela Caixa Econômica Federal (Caixa), responsável pelas questões legais relacionadas a esse seguro habitacional. 

O Supremo Tribunal Federal concluiu, em junho de 2020, pela responsabilidade da Caixa pelas apólices públicas do SH-SFH, decisão essa que é  definitiva e vinculante, dada a sua repercussão geral.

Apesar da conclusão do STF, há decisões de outras instâncias judiciais que determinam que a empresa preste serviços de guarda e vigilância de alguns desses imóveis, além do pagamento de aluguel a moradores desalojados. A empresa tem cumprido integralmente as decisões, apesar de não concordar com a atribuição de responsabilidade pelo seguro público.

A seguradora não tem poder para retirar os ocupantes dos imóveis ou para demolir os prédios. Essa prerrogativa é exclusiva das autoridades públicas, conforme correto posicionamento do Ministério Público, confirmado por decisão judicial assim assentada: “que os municípios tomem as devidas precauções para a proteção do patrimônio e vida das pessoas em casos que constatem riscos” (ação civil pública 0008987-05.2005.4.05.8300). 

Desde 2011, a SulAmérica fez vários alertas sobre a situação de risco do bloco D7 (torres A e B) do Conjunto Beira-Mar, inclusive tendo relatado isso no processo judicial em curso, situação confirmada pela Defesa Civil. 

É importante ressaltar que, apenas para atender às melhores práticas de governança, a SulAmérica decidiu proceder a vistorias, dentre as quais, a visita recente de engenheiro ao aludido conjunto. Ressalta-se que não se teve acesso à torre B, porque o imóvel estava ocupado irregularmente.”