Poucas exceções dos 61 candidatos inscritos têm comprovada atuação política comunitária
Ele me olhou e disse é pra votar nesse? A consternação no seu olhar não permitiu que eu dissesse: “não moço, voto na minha candidata, é essa aqui”. Ele me perguntou como quem esperava uma resposta imperativa, rápida, categórica. Nós estávamos na porta da secção eleitoral da escola professor Renato Fonseca, que se encontrava em uma das salas da escola Aggeu Magalhães, no bairro de Vila Popular. O olhar dele, a forma como me mostrou o santinho com o candidato que ele mesmo indagava se era o candidato dele, revelavam um estado de confusão, talvez até sobre o que seria aquele evento em um domingo qualquer num ano que não tem eleição para prefeito e vereador.
Eu apenas respondi “o senhor vai votar em quem o senhor quiser”, ele repetiu a pergunta, ao que meio que involuntariamente como um instinto do corpo peguei no adesivo que se encontrava no lado esquerdo do meu tórax e disse “eu votar nessa aqui, porque eu conheço o trabalho dela mas o senhor vota em quem o senhor conhece o trabalho”. A mulher que estava acompanhando ele disse “vem, não é assim que pergunta” e eles se dirigiram à mesária. Ela também estava nervosa e trêmula, pareciam ser familiares.
Para quem não presenciou o dia 01 em que ocorreram as eleições para Conselhos Tutelares em todo o Brasil, vou aqui revelar uma fotografia, no caso a minha, de quem esteve ao longo do dia às proximidades dos locais de votação: 3 homens sem identificação de adesivos olhavam como quem procuram presas, qualquer pessoa desatenta que passasse a vista neles teria o olhar fixado com ar de desesperado que nem aquele ditado que diz tempo é dinheiro, um olhar que convidava e a resposta viria imediatamente na concretude de cédulas de dinheiro.
A dúvida era quanto custaria aquele diálogo de segundos, um verdadeiro atacado de votos se construiu em Peixinhos e arredores. O chamado dia D. Um olhar, uma aproximação, uma nota. Essa cena se repetia no portão das escolas, em suas esquinas, do outro lado da rua, dentro das escolas e, também dentro das seções de votação. Como disse uma fiscal lá no Emac, “tinha gente fazendo o pix na hora, na fila de votação”.
Na cidade onde pessoas do mundo inteiro passam 4 dias extravasando os seus delírios de liberdade individuais ou coletivas, onde existe o maior carnaval do mundo e também onde a cultura tem uma força enorme de reinvenção e resistência, assim como diversas expressões, vivenciamos o avanço do conservadorismo político, moral, social. Nas eleições para o Conselho Tutelar ocorridas domingo se revelam algumas farsas, a primeira e maior delas é que há algum tempo a lógica de eleição para conselheiros tutelares não elege mais conselheiros de fato, com raras exceções Brasil afora. Tem se comportado como uma prévia das eleições a vereadores e prefeitos que ocorrem no ano seguinte, um termômetro, um teste.
Poucas exceções dos 61 candidatos inscritos têm comprovada atuação política comunitária na defesa do direito de crianças e adolescentes. Quando surgiram os Conselhos Tutelares, a constatação da trajetória se fazia do presente para o passado, a partir da participação popular das comunidades. Há algum tempo, a fraude começa com as cartas de recomendação fraudulentas assinadas por pessoas e entidades também compradas por parlamentares, passa pelo processo seletivo, em que candidatos da base do prefeito que tiraram nota 3 e 4 e, após os recursos foram empurrados para dentro, continua com a compra de votos no dia da eleição e é concluída no momento em que são inflados os votos daqueles que chegam nos primeiros lugares. Nada de novo na história da cidade de Olinda, em 2019 as eleições foram anuladas e, este ano mais uma vez várias denúncias estão sendo feitas para anulação seja efetivada.
De salutar temos alguns frutos, as forças progressistas de forma atrasada está começando a correr atrás do prejuízo, neste ano algumas campanhas importantes foram mobilizadas nacionalmente, a exemplo da eleição do ano, composta por quatorze entidades de direitos humanos, antirracistas, progressistas. Em torno de campanhas progressistas têm se aglutinado cada dia mais gente e a mobilização tem seguido a despeito do resultado das eleições. Em um país que assassina crianças e jovens negros todos os dias nas comunidades periféricas, isso não pode continuar desta forma, é preciso que a classe trabalhadora olhe para este tema com prioridade.
A proporção de mais de 70% dos candidatos eleitos serem de grupos conservadores que aliam o fundamentalismo político ao conservadorismo religioso, toda a corrupção e aparelhamento da instituição dos Conselhos Tutelares e o descarte do Estatuto da Criança e Adolescente, revela muito da política brasileira, do avanço do movimento neofascista e do quanto o debate em torno da moral vem dando a liga entre as classes dominantes e os setores mais subalternizados. O instrumentalismo de pautas que as forças progressistas reivindicam como direitos, como por exemplo uma vida livre do racismo, patriarcado e da exploração de classe, tem sido recontada a partir da ideologia burguesa, pautada no combate à ciência, conhecimento e, principalmente no rechaço à cultura revolucionária. Estamos todos embebidos pela ideologia que põe a classe trabalhadora em um ringue a lutar contra si mesmo, domingo vimos também esta fotografia, lideranças fortes nas comunidades sendo a mediação de políticos com a estrutura política e econômica nas mãos e as pessoas que vivem de forma ainda mais precária no cenário pós governo Bolsonaro e pandemia do coronavírus-19.
Uns mais tontos, outros acham que estão mais sóbrios, preciso ajustar a dose e nos entorpecermos juntos em um mesmo efeito de organização para a nossa sobrevivência fisiológica e também política, o dinheiro compra consciências que não estão alinhadas com a sua própria classe, importante lutarmos por direitos básicos a uma vida com dignidade, pois como diz Chico Science “Ô Josué, eu nuca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”. Sigamos pelo projeto de valorização e garantia da vida dos menos favorecidos na construção de poder popular feita pelos de baixo e para os de baixo.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga