O que aconteceria se fosse uma fã estadunidense ou européia?
Na última sexta (17/11), uma fã da cantora estadunidense Taylor Swift, Ana Clara Benevides, de 23 anos, morreu durante o show da artista, na cidade do Rio de Janeiro. Durante o evento, que ocorreu no estádio Nilton Santos, conhecido como Engenhão, organizado pela produtora T4F, foi proibido entrar com garrafas de água, além de ter sido tapado com tapumes, para impedir a visão de quem estava de fora, espaços que servem para a circulação de ar no estádio.
Em um dos dias mais quentes do ano, onde a sensação térmica dentro do estádio chegou a atingir 60°, em um show que estava em sua capacidade máxima, ou seja, os ingressos haviam acabado pouco depois de terem sido abertos para vendas, a empresa ainda assim quis impedir a visão de pessoas que estavam do lado de fora. Dentro, o valor da água chegava a 8 reais, em um show, que, inclusive, os ingressos custaram entre 450 e 850, a depender da pista.
É absurdo pensar que a morte de Ana Clara poderia ter sido evitada, mas não foi, porque a produtora T4F, visando o lucro, e apenas o lucro, não cuidou de uma estrutura básica para o público, em um dia que, já se sabia antecipadamente, seria tão quente como de fato foi. Há muitas nuances e aspectos em torno desse show, como por exemplo, mais de mil pessoas passaram mal e tiveram que ser socorridas, a maioria do público era composto por mulheres e meninas, e quando esse público feminino foi socorrido após passar mal devido às altas temperaturas e a falta de acesso à água, muitas delas, de acordo com inúmeros relatos presentes no twitter, instagram e demais redes sociais, eram diagnosticadas com ansiedade por estarem em um show de uma ídola, e recebiam rivotril como tratamento. O aspecto machista em lidar com esse problema, e com todo o público do show, de uma forma dessas é grave e reflete muito o pensamento machista predominante na sociedade, além de mostrar uma extrema incompetência das equipes médicas que estavam atendendo no dia.
Mas, para além dessas dimensões misóginas da nossa sociedade e na forma como o público foi colocado e representado nos meios de comunicação também, é interessante notar toda a importância que tem sido dada ao caso e toda a falta de atenção dada à família de Ana Clara, que é do Mato Grosso, por parte da produtora T4F e da própria Taylor Swift e toda a sua equipe, que nem sequer ajudaram a levar o corpo de volta ao estado da jovem.
No instagram, a cantora fez um post, escrito à mão, falando sobre a morte “de uma fã”, em que, além de não citar o nome de Ana Clara, deixa nítido que não pretende falar disso nos palcos durante suas apresentações, devido a dor que sente - e caso ela venha falar em algum momento, será devido à pressão, não por boa vontade. No show que ocorreu no domingo (19/11), os fãs relataram que ela cantou uma música que seria a favorita de Ana Clara, como homenagem. Além de o nome da vítima não ter sido citado em nenhum momento, Taylor não prestou solidariedade à família, e nem ela, nem a sua equipe moveram um dedo para arcar os custos, ficando à cargo do fã clube fazer uma coleta de dinheiro. Ana Clara Benevides, uma jovem, brasileira, negra, de família pobre, não merece ter seu nome citado pela sua artista favorita? Sua vida merece ser esquecida de forma tão rápida e banal? De qual raça, classe social e nacionalidade ela precisaria ser para ser citada?
Mas o que isso pode nos dizer de forma mais ampla e estrutural? O que a falta de posicionamento e atenção por parte da cantora e sua equipe e da empresa T4F nos diz em relação a como os fãs brasileiros são vistos por esses famosos? De acordo com Galeano: “Agora, para o mundo, América é tão só os Estados Unidos, e nós quando muito habitamos uma sub-América, uma América de segunda classe, de nebulosa identidade”. Nós somos essa sub-América, de acordo com a visão imperialista, e de acordo com a visão de grande parte dos artistas que vêm ao país. O Brasil, país que sofreu a colonização imposta por Portugal, e ainda vive dentro das consequências dessa imposição, tem a sua história marcada pelo controle das nações auto consideradas como “primeiro mundo” ou “desenvolvidas”.
Dentro desse quadro capitalista, das relações de forças produtivas, e das hierarquias criadas, nós estamos na periferia do sistema, ou seja, não somos mais colônias, mas vivemos de acordo com visão que o imperialismo estadunidense cria de nós como forma de controle, se materializando no quanto valem nossas vidas e qual a importância que temos nesse quadro geral: somos mercado consumidor e somos mão de obra barata, mas não temos o mesmo valor que eles. O que aconteceria se fosse uma fã estadunidense ou européia?
Por ocuparmos esse espaço dentro deste sistema tão amplo, claro, nossas vidas valem menos para eles. Apesar de o Brasil ter um grande público fã da Taylor, que consome e gasta rios de dinheiro com a mesma, esse mesmo público não foi importante o suficiente para receber a devida atenção quando uma fã morre durante o show e mais centenas de outros passam mal. A culpa da morte da Ana Clara não foi da Taylor Swift, foi da produtora milionária que ficou encarregada do evento - e de tantos outros -, e mais profundamente do sistema capitalista, sua sede por lucro e que também gerou toda uma crise climática que estamos sentindo as consequências.
Mas, a partir do momento em que a cantora não se posiciona, não presta solidariedade, demonstra pensar apenas na sua imagem, ela mostra quem é de fato, para além de uma imagem construída. Taylor Swift é mais uma cantora estadunidense, milionária, que, no fundo, apenas pensa em si mesma e no capital que gera, de acordo com a lógica do país a que pertence. Ser contra Trump e se dizer feminsita no cenário político dos EUA não a faz uma de nós. Inclusive, a “The Eras Tour”, turnê que está rodando o mundo, tem uma previsão de lucro de mais de 1 bilhão de dólares, podendo ser a turnê mais lucrativa da história, podendo fazer dela uma artista bilionária.
Taylor, assim como muitos outros artistas, vê os fãs brasileiros de acordo com a ótica a qual ela se constrói e mostra todas as suas limitações em relação à mínima empatia e cuidado com aqueles que tanto a adoram, e que representam um grande mercado consumidor da sua arte e seus produtos, reproduzindo uma visão colonialista e vendo o público brasileiro como inferior e com menos valor que outros públicos. Não é errado sermos fãs de artistas de outros países, mas é necessário aplicarmos uma visão correta de quem são eles, ao invés de romantizarmos uma imagem fruto de uma construção minuciosa feita por toda uma equipe, pensada e projetada como um produto à venda.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.
Edição: Vanessa Gonzaga