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OPINIÃO

Opinião | Condomínios fechados: a cidade do medo ou o medo da cidade?

O Núcleo Recife do Observatório das Metrópoles inicia, neste artigo, uma parceria com o Brasil de Fato Pernambuco

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Imagem de condomínio fechado de classe média na Região Metropolitana do Recife - Reprodução

Em 2021, o Recife foi classificado pelo índice Gini como a 2ª metrópole mais desigual do Brasil. Em 2023 a capital pernambucana abandonou esse posto e caiu para a 6ª posição. Mas qual o real alcance dessa mudança? Se o Recife "prosperou" nestes últimos anos, essa prosperidade conseguiu atingir todas as camadas sociais de forma justa e igualitária?

Observatório PE de Políticas Públicas e Práticas Socioespaciais, que é o Núcleo Recife do Observatório das Metrópoles, refletirá aspectos sociais e urbanísticos que cercam a metrópole pernambucana e os seus respectivos municípios metropolitanos. As ideias e reflexões serão apresentadas através de artigos de opinião “Recife, um outro futuro é possível?”, publicados no Brasil de Fato Pernambuco e na Marco Zero Conteúdo. Confira abaixo o nosso primeiro artigo.

Condomínios fechados: a cidade do medo ou o medo da cidade?

por Janaína Lima*

As cidades são formadas a partir de diferentes processos que conversam com o contexto histórico e social e que resultam numa diversidade de formatos. Dentre elas, atualmente têm se destacado na metrópole do Recife os condomínios fechados, em parte por seu discurso como uma saída para a violência urbana, mas também pelo apelo a um papel simbólico de diferenciação social por status.

Longe de responder satisfatoriamente a problemáticas sociais, na realidade a separação e o isolamento propiciados por empreendimentos desse tipo contribuem para a insegurança e ampliam a sensação generalizada de medo, rebatendo-se ainda na continuidade das desigualdades sociais. Por que, então, os condomínios fechados vêm se difundindo como uma das soluções mais seguras de moradia nas cidades?

a partir das últimas décadas do século 20, proliferam os condomínios fechados voltados para as classes alta e média alta

Espaços habitacionais segregados não são uma característica recente nas grandes cidades. Ao longo da história, existiram divisões baseadas em critérios diversos, a exemplo dos culturais, funcionais ou por status social, entre outros. No caso brasileiro, de maneira geral, o processo de urbanização ao longo do século 20 foi marcado pelo expressivo aumento populacional e expansão urbana desordenada, o que acarretou uma série de problemas, como a pressão sobre áreas ambientais frágeis e o aumento da violência urbana.

É nesse contexto que, a partir das últimas décadas do século 20, proliferam os condomínios fechados voltados para as classes alta e média alta, com empreendimentos imobiliários que ocupam grandes áreas, distantes dos espaços  centrais das cidades.

Nessas áreas residenciais, há restrição e controle no acesso de pessoas externas ao utilizar aparatos de segurança, como cercas, muros, equipamentos de vigilância e equipes de monitoramento. Além disso, os mais sofisticados dispõem de variadas comodidades, em especial de lazer, que buscam suprir as necessidades de seus moradores e minimizam, assim, a necessidade de sair e usar o espaço público urbano, interpretado, de maneira distorcida, como o local da violência.


Imagem digital de área de lazer em condomínio de classe média a ser construído na zona sul da capital / Reprodução

É essa estrutura que apoia a narrativa de que os condomínios fechados são espaços seguros. Se, por um lado, eles criam a sensação de segurança interna, por outro, suas grandes extensões territoriais comprometem a segurança coletiva, ao criar locais inóspitos, sem contato com o espaço público e, por consequência, mais inseguros.

Na metrópole do Recife, chama atenção o avanço recente de empreendimentos desse tipo em diferentes roupagens. Na década de 2010, foram anunciadas ou lançadas diversas propostas de megaempreendimentos no formato de “bairros planejados”, ampliando a escala dos condomínios fechados horizontais. Tratam-se de empreendimentos que associam o uso habitacional a serviços, comércio, educação, conforme o padrão de consumo da população a que se destinam (em geral, funcionários de padrão médio e superior dos novos polos de desenvolvimento metropolitano).

Contudo, o maior avanço dos condomínios fechados aconteceu na produção imobiliária destinada à população com rendas mais baixas. Embora no passado os conjuntos residenciais populares abrangessem grandes extensões, estas eram abertas à cidade. Atualmente, empreendimentos de mesmo perfil são baseados na lógica do condomínio fechado.

Contudo, o maior avanço dos condomínios fechados aconteceu na produção imobiliária destinada à população com rendas mais baixas. (...) Esse formato dialoga com um outro apelo dos condomínios fechados, baseado em seu papel simbólico de diferenciação social por status

Quando se destinam à classe média baixa, os conjuntos residenciais evocam os condomínios de luxo ao incluir ofertas variadas de equipamentos de lazer. Mesmo se não oferecem opções de diversão, eles seguem a lógica do fechamento condominial como sinônimo de segurança. Cada vez mais comuns, esses tipos de empreendimentos populares têm caracterizado grandes trechos de bairros em Jaboatão dos Guararapes, Paulista, Igarassu, entre outros municípios metropolitanos.

Essa aproximação no formato dos empreendimentos dialoga com um outro apelo dos condomínios fechados, baseado em seu papel simbólico de diferenciação social por status. Nesse ponto é importante notar que os espaços habitacionais segregados apresentam manifestações diversas e, por vezes, discriminatórias.

Ao tomar  como referência um recorte socioeconômico, os condomínios fechados podem ser classificados como enclaves, pois resultam de uma segregação voluntária de seus moradores, com a renda e a classe social como seus traços distintivos, proporcionando um estilo de vida exclusivo.


Condomínio do Minha Casa Minha Vida / Reprodução

Os espaços condominiais bem cuidados, vigiados e supostamente livres de violência - criando uma imagem de suposta perfeição - não deixam tão explícito que se tratam de uma forma de discriminação e exclusão, que são necessárias para sua manutenção e continuidade.

A escolha voluntária das classes mais altas da população por habitar condomínios fechados se contrapõe ao caráter involuntário dos espaços segregados e periféricos destinados historicamente para os estratos da população de renda mais baixa, a exemplo dos grandes conjuntos habitacionais situados em áreas periféricas da metrópole. Nestes, a localização também periférica se dá por motivos diferentes: a busca de terra urbana com menor custo para a implantação dos empreendimentos, o que repercute em uma postura de afastamento daqueles com menor renda.

Mesmo que os empreendimentos orientados para a classe média baixa também se situem em localizações periféricas, seus residentes têm uma leitura de que suas escolhas residenciais se assemelham às daqueles que habitam condomínios fechados de luxo.

O desejo por diferenciação, ascensão social e consumo, em conjunto com a visão dos condomínios fechados como solução para a violência urbana, têm sido apropriados pelo mercado imobiliário como estratégias para alavancar novos produtos habitacionais

O desejo por diferenciação, ascensão social e consumo, estimulados ainda mais pela ostentação nas redes sociais, em conjunto com a visão dos condomínios fechados como solução para a violência urbana, têm sido apropriados pelo mercado imobiliário como estratégias para alavancar novos produtos habitacionais. Isso reforça a difusão da lógica dos condomínios fechados para espaços habitacionais voltados para as classes média e baixa.

Se por um lado muitas das propostas de condomínios fechados para as faixas de renda mais elevadas da população não avançaram na metrópole do Recife, por outro, é gritante o avanço desse modelo em conjuntos de renda média e baixa, sendo urgente discutir a repercussão desses conjuntos na cidade.

Com estes cercamentos, as cidades se tornam cada vez mais agressivas para seus cidadãos, restando sucumbir cotidianamente à crença ilusória neste modelo como garantia de nossa segurança.


Condomínio do Minha Casa Minha Vida / Agência Brasil

É necessário combater o pensamento da lógica condominial enquanto substituto da sociabilidade urbana. Na verdade, as cidades  são, por excelência, o local de convívio e compartilhamento de experiências, livres de rótulos como renda ou classe social, o que parece amedrontar uma parcela da população que opta pelo afastamento quase integral da cidade.

Tenhamos medo dessa negação da cidade. A salvaguarda para nossa segurança habita na reconquista da cidade como espaço coletivo, em compreender o compartilhamento do espaço público como base do nosso habitar. Para tanto, é preciso maior prudência na implantação de condomínios fechados, com análise mais rigorosa do poder público quanto ao formato dos empreendimentos, evitando a prática de que grandes trechos das cidades sejam cercados.

Também é importante reivindicar que novos empreendimentos habitacionais, sobretudo os destinados aos segmentos da população de rendas mais baixas, tenham melhores localizações, com mais inserção urbana, o que pressupõe empreendimentos em escalas menores que resultem numa organização espacial de maior qualidade para a metrópole do Recife.

Janaina Lima é doutoranda em Desenvolvimento Urbano pela UFPE, pesquisadora do Núcleo Recife do Observatório das Metrópoles e professora substituta na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Edição: Vinícius Sobreira