Se oficialmente ainda faltam três meses para o início das campanhas eleitorais, muitas cidades já estão com o ambiente político bastante agitado. E o município de Pesqueira, na região Agreste, está vivendo uma das pré-campanhas mais agitadas de Pernambuco. Os dois pré-candidatos na disputa são o cacique Marcos Xukuru (Republicanos) e o delegado Rossine Cordeiro (Podemos), que travam uma batalha que já acumula mais de 50 ações judiciais e até exposição de dados de investigação sigilososa sobre abuso sexual de criança.
O Brasil de Fato Pernambuco entrevistou o advogado e vice-prefeito Guilherme Araújo, ou “Guila Xukuru”. Ele foi secretário de Governo, de Turismo e de Articulação durante os dois anos de mandato interino do vereador Bal de Mimoso como prefeito (2021-22). Eleito, assumiu partir de 2023 o cargo de vice-prefeito de Bal para o “mandato tampão” que se encerra este ano. Também tentamos contato com a candidatura do delegado Rossine, mas não tivemos retorno até o momento.
Guilherme descreve o ambiente eleitoral como “tenso” e afirma que há pessoas com medo de se posicionar. “Isso é consequência da forma que ele (Rossine Cordeiro) faz o debate, usando o fato de ter sido delegado para fazer acusações contra todo mundo”, diz o vice-prefeito. “É um modus operandi que implanta medo na população e atribui crimes a partir do que ele imagina, da criatividade dele e do interesse eleitoral”, critica. “Isso tem sido danoso para o debate eleitoral”, complementa o jovem indígena.
Front judicial
Guila tem sido uma liderança nas batalhas judiciais dessa disputa, que já conta com mais de 50 ações judiciais do partido Republicanos contra Rossine e nomes ligados a ele, como seu ex-marqueteiro. São, até o momento, 19 ações na Justiça Eleitoral e outras nas esferas Cível e Criminal. “Ele já tem algumas multas por campanha antecipada e o Tribunal Regional Eleitoral já mandou ele retirar muitos vídeos do ar”, lembra Guilherme Araújo.
O Brasil de Fato Pernambuco teve acesso a algumas das ações, em sua maioria por propaganda negativa e antecipada, calúnia, ofensa à honra e uso de fatos inverídicos. Existem liminares de primeira instância para que a Meta/Facebook e Rossine removam determinadas postagens das redes sociais, sob pena de multa de R$500 por dia de descumprimento e outras ações acusando o pré-candidato de fazer uso de jingle musical com propaganda eleitoral antecipada veiculado em “paredões” de som, divulgação de número eleitoral, distribuição de brindes, entre outros.
Em vídeo, Rossine afirma que esses números são enganosos e que a grande maioria não passam de denúncias. “Isso é fake news. Meu nome aparece em algumas denúncias que a ‘turma de Marquinhos’ está fazendo, me acusando de campanha antecipada - o que não procede, eu nunca fiz campanha antecipada e nem estou fazendo”, se defende.
No mês de maio a Justiça Eleitoral já apreendeu dois carros de som pagos por Rossine, acusando o delegado de propaganda eleitoral ilegal. Caso se repita, será aplicada uma multa de R$ 2 mil. Mas a prática não é inédita: em maio de 2023 um carro de som passou a circular por Pesqueira, com a voz de Rossine e apresentando seu nome, criticando os serviços públicos de saúde ofertados pelo município.
Front comunicacional
Ainda no vídeo sobre os processos, o delegado aposentado afirma que “processo mesmo vai acontecer contra crimes graves em Pesqueira” e em seguida cita o assassinato do secretário de Articulação, Wellington Guenes, em frente à prefeitura em junho de 2021; cita ainda a morte de um porteiro da prefeitura, além de ilações sobre supostos envolvidos com tráfico de drogas, roubo de carga, formação de quadrilha e crimes de corrupção e fraude em licitação na gestão municipal.
O vice-prefeito Guila sabe, por não ser algo inédito nesta pré-campanha, a quem são endereçados os ataques nas redes sociais - nunca formalizados na Polícia ou Justiça pelo ex-delegado. “Ele atribui a mim uma relação com o tráfico de drogas, acusa o cacique de formar organização criminosa, acusa outras pessoas da gestão de integrarem grupo de extermínio... então são muitas mentiras, um discurso de ódio muito forte”, se defende Guilherme. “É decepcionante que ele use de forma tão baixa o cargo que teve. Vamos procurar os meios para que se posicone de forma mais responsável”, completa.
O vice-prefeito também diz que, no caso das acusações de corrupção e fraude de licitação, o adversário estaria confundindo o eleitor. “Ele pega o valor referenciado como teto e diz que aquele foi o valor gasto”, reclama. “Já evidenciamos como são baixas e sem sentido cada uma dessas acusações. Pesqueira tem perdido muito com essa forma de fazer política, sem debater o futuro da cidade para os próximos 4 anos”, completa o indígena.
Guilherme considera que a postura do candidato tem contaminado negativamente o eleitorado de Pesqueira. “A forma que ele coloca o debate eleitoral fez reascender em alguns setores um preconceito contra o povo Xukuru. Ele acaba estimulando as pessoas a fazerem política assim”, lamenta Araújo, destacando uma ação que moveu contra um apoiador de Rossine. “Foram vários ataques racistas contra mim, dizendo que indígena é preguiçoso ou que não sou indígena”, diz Guila.
Rossine também afirma que um “processo de verdade” é o caso criminal contra o cacique Marcos, cuja condenação o impediu de assumir a prefeitura após ser eleito em 2020. “Ele deveria ter sido preso, mas houve uma falha e o processo prescreveu, acabou o prazo de condenação, mas ele (Marcos) nunca foi absolvido”, dipara Rossine. Ao lembrar dos imbróglios, Guilherme Xukuru resume que “o cacique Marcos foi legitimamente eleito, mas como havia sido injustamente condenado, isso gerou um efeito secundário que foi a inegibilidade”, avalia.
As acusações do delegado Rossine costumam ser proferidas em seu programa semanal, transmitido em rádio e TV no município. Foi numa dessas transmissões que ele fez a acusação mais grave e também mais controversa, quando expôs informações de uma investigação que corre em segredo de justiça sobre um possível caso de abuso sexual contra criança numa escola indígena no território Xukuru do Ororubá.
O caso da criança
No dia 3 de maio deste ano, o delegado aposentado divulgou em seu programa o caso de uma criança indígena que, em 2022, teria sofrido violência sexual dentro da escola indígena em que estudava. Rossine informou o nome da escola, o cargo do funcionário investigado pelo crime, a idade da criança e outros dados. O ex-delegado nunca atuou neste caso e diz ter obtido as informações através de relatório do Conselho Tutelar. A investigação conduzida pela Polícia Civil e pelo Ministério Público corre em segredo de Justiça.
Rossine acusa a prefeitura de não oferecer apoio e ainda intimidar a família da criança. “A mãe não teve apoio nenhum. A gestão mandou ela se calar e ir embora de Pesqueira sem denunciar, mas ela foi corajosa e denunciou. Essa mãe começou a se sentir ameaçada e foi embora da cidade com seu filho”, diz o ex-delegado. “Esse caso ficou impune e quem foi punida foi a mãe e o menino”, diz ele.
Ele também acusa abertamente a gestão e o cacique Marcos de protegerem o homem investigado no caso. “O funcionário estuprador, contratado pela prefeitura, continua na mesma escola. Aqui em Pesqueira bandido desse tipo tem proteção do governo municipal, enquanto crianças indefesas é que têm que se retirar do ambiente”, dispara o pré-candidato. “Detalhe: quem indica e contrata funcionários daquela escola é o cacique”, sugere Rossine.
Noutro momento ele também acusa a comunidade escolar e o povo indígena de serem coniventes com o caso. “Um ser humano normal, que não fosse um psicopata, iria se doer com isso, tomaria providências para que o funcionário fosse preso em flagrante. Mas a regra deles tem sido abafar os crimes”, acusa. O grupo político do cacique Marcos Xukuru critica o adversário por usar eleitoralmente o caso. “Isso é um assunto muito sério, um caso complexo e a investigação corre em segredo de justiça. Por isso temos evitado falar”, resume o Guilherme Xukuru ao BdF.
O Conselho Municipal de Defesa das Crianças e Adolescentes (Comdeca) viu no caso uma violação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e acionou a Procuradoria Municipal para abertura de investigação para descobrir quem vazou o relatório para Rossine. E Conselho de Professores Indígenas Xukurus emitiu nota se defendendo das acusações feitas pelo pré-candidato e criticando o político por “agir de forma irresponsável com as pessoas envolvidas”. As primeiras publicações sobre o tema foram retiradas do ar pelo próprio Rossine, que segue falando sobre o assunto, agora de maneira menos inconsequente.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069/1990) afirma, em seu artigo 17, sobre o direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade, afirma-se o direito da criança e do adolescente à inviolabilidade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação de sua imagem e identidade. No artigo 100, tratando das medidas de proteção à criança, é pontuada a necessidade de fazê-las preservando sua intimidade e reserva da vida privada.
Guila rebate as acusações sobre a atuação da gestão e seu grupo político no caso citado. “Assim que houve a notificação, a gestão ofereceu apoio à família, se colocando para contribuir com a investigação. Todos os funcionários foram ouvidos pela Polícia Civil, buscando identificar os responsáveis” diz ele. “A família de fato saiu do território, mas não foi devido a nenhuma ameaça. Era por uma situação própria da família, anterior ao caso da criança”, garante Guila.
Por lei, escolas indígenas não são municipais, mas da Rede Estadual de Ensino e com gestão escolar de responsabilidade do povo indígena em que está inserida. Assim, de fato a contratação ou demissão de funcionários das escolas dentro do território Xukuru do Ororubá passa pelo cacique Marcos. Mas Guila Xukuru nega que essas nomeações tenham interferência pessoal do líder. “Não é o cacique ‘manda’ demitir ou contratar. Não é assim. É a gestão escolar que define os nomes, através de uma chamada pública”, diz ele.
Pesquisas eleitorais
As pesquisas de intenção de votos mais recentes em Pesqueira foram divulgadas em dezembro de 2023. No dia 12, o levantamento do Instituto Opinião a partir de 400 entrevistas, colocava Rossine (Pode) na liderança, com 38,6%; seguido de Marcos (Rep), com 22,8%. Os nomes do prefeito Bal de Mimoso (3,5%) e do vice Guilherme Xukuru (3,3%), ambos também do Republicanos, constavam como potenciais candidatos. Os votos brancos, nulos e indecisos somavam 32%.
Semanas depois, em 31 de dezembro, o Instituto Múltipla divulgou sua pesquisa, realizada com 250 entrevistas, mas com resultado oposto ao outro estudo. Neste o Cacique Marcos na lidera com 38%, contra 26% do Delegado Rossine. Brancos, nulos e indecisos somam 31%. A mesma pesquisa aufere que a gestão de Bal de Mimoso tem 28,5% de aprovação e 58% de desaprovação.
Perfis
O opositor delegado Rossine (Podemos) foi por dois mandatos (de 2013 a 2020) prefeito de Lajedo, município de 40 mil habitantes que fica a 70km de Pesqueira. Mais recente, em 2022, foi derrotado em sua candidatura para deputado estadual, pelo Solidariedade, quando obteve 31,3 mil votos. Um detalhe que vale informar é que Rossine é também indígena Xukuru do Ororubá, informação que decidiu remover de seu perfil nas redes sociais há alguns meses.
Apesar da linha de atuação próxima ao bolsonarismo e do apoio confirmado do PL ao seu nome, o candidato do Podemos tem usado o vermelho como cor predominante de sua campanha e fez, poucos meses atrás, uma postagem elogiosa agradecendo a Lula por ter liberado recursos para uma escola, uma creche e um ônibus escolar para o município de Pesqueira. Rossine também tem apoios do PSD e da federação PSDB-CD.
O candidato da situação, cacique Marcos Xukuru (Republicanos), é histórico apoiador de Lula e conta com os apoios da federação PT-PCdoB-PV, do PSB, do PDT, PP, Avante e da Rede, que tem federação com o PSOL, mas este último ainda não definiu sua posição. O Cacique Marcos encabeçou apenas uma disputa eleitoral, quando venceu de maneira apertada, com 17,7 mil votos (51,6%), a eleição para prefeito de Pesqueira em 2020.
Mas o líder indígena não chegou a assumir a prefeitura sequer por um dia. Um erro judicial resultou em novos erros em sequência, impedindo-o de assumir a gestão. Só que, em outubro de 2023, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou o processo. Os desembargadores apontaram erro do Poder Judiciário teria “ignorado a inocência” de Marcos. A decisão lhe devolveu os direitos políticos, resultando na opção de disputar novamente a prefeitura este ano.
Tiros, incêndio e anulação da eleição
A Justiça Eleitoral impediu sua posse, em 2021, com base na Lei da Ficha Limpa, já que Marcos Xukuru fora condenado criminalmente em 2015 e precisou de um indulto assinado pela presidenta Dilma Rousseff em 2016. Xukuru foi acusado de ter ordenado um incêndio contra casas e veículos no ano de 2003.
O dono das propriedades era José Lourival Frazão, que horas antes havia atirado contra Marcos e mais dois indígenas, tendo assassinado os dois últimos, enquanto o cacique baleado sobreviveu. Marcos diz que o revide incendiário não foi ordenado por ele, mas reação espontânea dos indígenas.
O ataque a tiros foi o ápice e o incêndio marcaram o ápice de um conflito interno do povo Xukuru envolvendo a construção de um santuário católico. O atrito resultou na cisão dos Xukurus em duas comunidades. Se quiser entender melhor o caso, leia a parte final da matéria disponível neste link.
Marcos recorreu na Justiça Eleitoral, mas em agosto de 2022 o TSE acabou anulando sua eleição. Em outubro daquele ano, junto às eleições gerais, o povo de Pesqueira votou também para prefeito. E o escolhido de 65% dos eleitores foi Bal de Mimoso (Republicanos), vereador que já estava como prefeito interino desde janeiro de 2021. Ele é aliado do cacique, assim como o vice-prefeito eleito, o advogado Guila Xukuru.
Edição: Helena Dias