Nossa luta deve se pautar também por ideias e emoções, tratar temas que mexam com mentes e corações
O Projeto de Lei 1904/2024, apelidado de “PL da gravidez infantil”, está tramitando no Congresso e teve seu requerimento de urgência colocado em votação surpresa nesta quarta-feira (13) pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP). Esse projeto de lei reflete o nível de conservadorismo do nosso país e o quanto ainda temos que lidar e combater ideologias nocivas como esta.
Neste momento os movimentos sociais, em especial os movimentos feministas estão lutando para manter um direito básico para as mulheres. Muito longe do horizonte de luta de debater direitos reprodutivos de uma forma justa e aberta e assegurar direitos, saúde, segurança e dignidade para todas e todos que possuem útero, estamos ainda em um momento de luta pelo mínimo que nos era garantido.
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Está assegurada na Constituição o direito ao aborto em casos de estupro, risco de morte da gestante e anencefalia do feto. Caso esse PL seja aprovado, o aborto após 22 semanas de gestação será equiparado a homicídio simples. Isso não é apenas um grande retrocesso para as mulheres, como também não acompanha a infeliz realidade dos casos de violação sexual contra menores de idade no Brasil.
De acordo com uma pesquisa da Fundação Abrinq (dados de 2022), a cada 24 horas são registradas 124 denúncias de violência sexual infantil. Ainda de acordo com a pesquisa, para cada quarto vítimas de violência sexual, três são crianças e adolescentes. Entre 2015 e 2021, de acordo com boletim produzido pelo Ministério da Saúde, houve mais de 200 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil.
Em 68% desses casos o abusador está entre familiares ou pessoas próximas aos familiares das vítimas, o que torna as situações ainda mais delicadas e difíceis de serem expostas e muitas vezes até descobertas. O quanto os números de casos subiriam se contássemos também os casos que não foram descobertos e denunciados?
Para ilustrar um pouco dessa realidade dolorosa, no mês de maio deste ano um pai foi preso após ser flagrado abusando a sua filha, uma adolescente de 17 anos que estava internada na UTI de um hospital, na cidade de São Paulo. Os funcionários do hospital suspeitaram e filmaram o abuso - e a partir do material fizeram uma denúncia, que resultou na prisão do abusador. Mesmo com provas e com o exame de corpo de delito realizado, a mãe da vítima defendeu o abusador. O que teria acontecido com essa jovem se pessoas fora da família não tivessem feito a denúncia?
Em 2020, na cidade de Recife, Pernambuco, houve um caso que ganhou notoriedade nacional, de uma criança de 10 anos, do estado do Espírito Santo, que havia sido encaminhada para o CISAM. A criança estava grávida após sofrer um estupro do seu tio e mesmo assim teve o procedimento abortivo negado pelo hospital do seu estado. O aborto, apesar de ser legal, foi alvo de manifestações de grupos conservadores, partidos políticos e parlamentares, além de ter sido vítima de assédio de pessoas dentro do hospital. Esses exemplos, apesar de pontuais, refletem a forma reacionária e retrógrada de pensar da sociedade brasileira, uma realidade que deve ser encarada.
Mães, avós e familiares em geral que negam os abusos, protegem os abusadores. E grupos conservadores muito bem organizados e financiados, que pregam a violência em cima de pessoas já tão violentadas, querem controlar os corpos e vidas das vítimas.
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Muitas perguntas devem ser feitas: o que acontece com uma criança de 10 anos que gera outra criança? Física e emocionalmente, quais são as sequelas? Qual a perspectiva de futuro dessa criança? Fatores sociais, raciais e econômicos devem ser colocados na balança ao se pensar nessas situações, especialmente quando consideramos a concretude da sociedade a qual fazemos parte e sua construção histórica.
Apesar dos ganhos que a esquerda teve nos últimos anos e da vitória de Lula em 2022, que acendeu a esperança e possibilidades de mudança, o conservadorismo e o extremismo, hoje escancarados e reformulados, ainda são muito presentes e têm nas temáticas ideológicas e morais suas maiores mobilizadoras.
A formação atual do nosso Congresso impõe e perdas e danos cruéis para nós mulheres e para a esquerda de forma ampla.
É necessário que a nossa luta política se paute também por meio das ideias e das emoções, sabendo dialogar e tratar de temas que mexam com as mentes e corações daqueles que estão inclinados ao conservadorismo por uma idealização, acreditando na “moral e bons costumes”, vítimas do uso das religiões de forma tendenciosa e instrumentalizada para atender objetivos políticos.
Devemos aprender a também usar a luta ideológica em favor das nossas pautas, de forma estratégica. Vamos ocupar as ruas e também as mentes na luta por nossos direitos.
Edição: Vinícius Sobreira