Por Yara Baiardi*
É delírio pensar que pode existir nas nossas cidades um transporte público coletivo com qualidade, eficiência, conforto e segurança? Ou uma realidade possível?
A mobilidade urbana é a base da sustentabilidade das cidades. Nela estão inclusos o andar a pé, de bicicleta e das mais diversas maneiras atreladas ao uso dos veículos – caminhões, ônibus, carros e motos (próprios ou de aluguel) – sobre trilhos (trem, metrô, VLT), pelas águas e pelo ar (que o diga a nossa elite, que se utiliza de helicópteros e jatinhos particulares para deslocamentos mais distantes).
Mobilidade engloba também a implantação de uma infraestrutura pautada no desenho de uma rede que contemple: a articulação dos sistemas de transportes para que todos possam acessar democraticamente toda a cidade; sua operação (rotas, frequências, oferta de viagens etc.) e seu financiamento, tudo englobado num contexto institucional e tecnológico.
A partir da segunda metade do século 20, ações no campo dos transportes se resumiam quase exclusivamente a pavimentar, fazer uma ou outra ponte e conceder ao setor privado a operação dos ônibus e manutenção das calçadas, em linhas gerais. A meta era ligar o ponto A ao ponto B de maneira rápida. O quantitativo imperava em detrimento da qualidade do espaço público.
Qual a questão para a qual queremos chamar a atenção? Estamos no século 21 e o cenário mudou radicalmente, mas a gestão pública, o setor privado e a sociedade não entenderam os novos desafios impostos à nossa geração.
O metrô e o trem são os sistemas que mais transportam pessoas e, junto com o VLT, são os que menos poluem o ar. Todavia, na Região Metropolitana do Recife as linhas de metrô da CBTU avançaram muito pouco do seu traçado original oriundo da herança férrea. Pior: sua demanda de passageiros vem caindo drasticamente. A zona norte da cidade, aquela que teve outrora uma ferrovia na avenida Norte, continua sem ter trilhos na sua área.
Quanto aos ônibus, até hoje ainda não há espaço para que eles circulem com eficiência nas ruas estruturantes da cidade, pensando-se, logicamente, num desenho de rede legível e integrado. No caso do Recife, há um espaço dedicado ao BRT na avenida Caxangá e algumas poucas faixas azuis, aquelas com prioridade à circulação de ônibus no viário.
O suposto ganho de tempo na avenida Caxangá é perdido quando os ônibus disputam espaço em trechos da sua jornada até alcançar um dos mais importantes hubs (centros ou pólos) de mobilidade da cidade: o terminal Joana Bezerra, que carece, inclusive, de melhorias urbanas no seu entorno.
Aqui cabe uma reflexão sobre o papel dos “terminais”, sobretudo os do Barro, Macaxeira e Tancredo Neves: eles precisam ser revistos no conceito arquitetônico-urbanístico das suas edificações.
Na concepção do século 21, esses equipamentos estratégicos necessitam fazer parte do território, conectados ao lugar e não apartados do entorno por grades. São integrações concebidas como pontos de encontro, espaço público de qualidade, que, a depender do local, sejam espaços ambientalmente fluídos entre trem, metrô, VLT, BRT, bicicletas, carros e pessoas, capazes de contribuir para uma dinâmica de cidade mais acolhedora.
Ainda no confuso campo da operação dos ônibus no Recife, temos três “sistemas de operação” que se sobrepõem nas ruas e avenidas.
O mais famoso é denominado Sistema Estrutural Integrado (SEI), que em linhas gerais abarca a Região Metropolitana do Recife e é composto por cinco tipos de rotas (Perimetral, Radial, Alimentadora, Interterminal, Circular) e as linhas do metrô. O SEI é gerido pelo consórcio que tem o nome fantasia de Grande Recife Consórcio de Transportes.
O segundo sistema é o “complementar do GRCT” e, por fim, o “complementar da Prefeitura”, gerido pela CTTU. Além disso, o desenho dessas rotas, que é de difícil acesso e compreensão, dificulta a utilização desse complexo sistema de operação de ônibus da cidade por parte da população.
Sigamos agora para a questão do financiamento. No caso acima, se você sair de um “sistema” para outro, irá pagar. De fato, o Recife não é para amadores! Em tese, o usuário tem integração “temporal” somente dentro do SEI – que, aliás, unificou recentemente o valor da tarifa dos anéis A e B.
Façamos uma pausa importante na discussão para destacar um ponto que se liga ao financiamento: o sistema de ônibus convencionais tem, no século 21, três grandes “concorrentes” diretos, que são o transporte clandestino, as motocicletas e os carros de aplicativos. Tudo isso associado a um contexto em que predominam diversas políticas de apoio à compra do carro particular, como redução e isenção do IPI, entre outros.
Em síntese, o que temos é mais pessoas saindo gradativamente do sistema de transporte público coletivo, sistema esse sustentado pelo pagamento de tarifa pelos próprios usuários. Nesse cenário de saída contínua de passageiros (e dos pagantes), que não é um privilégio do Recife, é “comum” as empresas lotarem seus ônibus, diminuírem a frequência de suas viagens e não fazer as necessárias manutenções e/ou renovação de frotas.
A tônica é unicamente a redução dos custos, prejudicando sobremaneira a qualidade do serviço. Se a “conta não fechar” para o operador, ele entrega o serviço. Caso contrário, terá prejuízos. E por quê? Porque um “modelo” do século passado não condiz com os desafios atuais da mobilidade urbana.
A pandemia da Covid-19 escancarou esse cenário em várias cidades brasileiras e nos lembrou que transporte público é um serviço essencial. Este modelo está esgotado e requer uma mudança significativa em seu alicerce, ainda mais quando se insere nessa equação os subsídios (que vêm ganhando força no cenário brasileiro), inclusive pela constatação de que esse dinheiro público não está servindo para melhoria da qualidade do serviço ofertada na esmagadora maioria dos casos.
Trazemos ainda a problematização da tecnologia. Há uma revolução digital em curso, em diversas áreas, que ainda não chegou ao transporte público coletivo das nossas cidades. Quem pega ônibus não sabe a que horas ele chegará à parada - ou se chegará! Não sabe também o tempo que perderá dentro do ônibus, frequentemente lotado.
Não podemos deixar de falar da governança institucional. A RMR inovou com a criação do Consórcio Metropolitano no ano de 2008. Mas poucos são os avanços desde então. É ilusão achar que o desenvolvimento da mobilidade é competência exclusiva do Governo de Estado. Quem conhece seu território é o município, que deve ter voz ativa e fomentar as mudanças.
Para ilustrar a questão, trazemos o dilema da cidade de São Paulo. Cabe ao Governo do Estado decretar onde e quando serão implementadas as linhas de trem e metrô, ficando parte do desenvolvimento urbano da maior metrópole do país à mercê da ação (e inação) do estado, tanto no planejamento como na implementação do sistema de alta capacidade. Esse sistema, aliás, está intimamente relacionado ao potencial de construção dos maiores gabaritos da cidade. Articular governanças, projetos e definir responsabilidades em conjunto é fundamental no século 21.
Precisamos refletir o quanto a ausência de políticas públicas efetivas no transporte público coletivo pressiona o já saturado sistema viário da cidade. Todos pagamos o preço pela disputa do viário – estejamos num Porsche, num Fusca, numa moto CG ou numa “Mercedes com motorista”, vulgo ônibus. Somos parte dos congestionamentos e contribuímos com a poluição - aliás, resgatamos o dado de que 25% das emissões globais dos gases de efeito estufa vêm do setor de transportes.
Recife disputa anualmente o título de capital com o maior tempo gasto nos deslocamentos diários. Fica evidente que nosso modelo atual de mobilidade é baseado no consumo do espaço, do tempo, dos recursos naturais e da saúde – urbana e humana. E esse modelo é insustentável.
O SUM (Sistema Único de Mobilidade) é uma esperança para reverter este panorama. Com a mesma lógica do SUS, ele almeja estruturar diretrizes e ações entre as três esferas – federal, estadual e local. O SUM pode contribuir na estruturação do tripé rede/infraestrutura, operação e financiamento. Hoje o SUM está na PEC 25/2023, em tramitação no Congresso.
Um primo distante do SUM seria o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – que é um bom exemplo de gestão ao fomento das grandes obras de infraestrutura, desde que as oportunidades sejam bem aproveitadas e, em especial, bem administradas, o que parece ser o maior gargalo ao falarmos de mobilidade urbana no Brasil. O BRT do Recife, que saiu desse pacotão, se findou – tanto como PAC, quanto no suposto sistema de eficiência e qualidade da mobilidade.
Por ora, o Recife precisa resgatar seu protagonismo na mobilidade, em especial no que tange o transporte público coletivo. Que se reduza urgentemente a velocidade máxima nas vias e se aumente a fiscalização – pois é uma ação que salva vidas. Mas que se corra (ou melhor, voe) no planejamento disruptivo de um desenho de rede de mobilidade capaz de englobar os diversos sistemas – sobre trilhos, sobre pneus, aquaviário e teleférico.
Que se implante novas faixas azuis dentro de uma lógica de rede – o mesmo recomendamos para as ciclovias. Que se repense a modelagem de operação de diversos sistemas (ônibus e trens), para que se configure uma rede integrada e qualificada por seus “terminais” dentro de um escopo de financiamento que não se pendure exclusivamente na tarifa dos passageiros, quiçá estruturada pela própria Tarifa Zero.
Ressignificar a mobilidade é dar espaço ao transporte público coletivo e à mobilidade ativa. É mirar longe e agir agora. Recife merece isso e muito mais para que o delírio vire realidade!
*Arquiteta e urbanista, doutora e professora na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pesquisadora do Observatório das Metrópoles - Núcleo Recife (Pernambuco).
Edição: Vinícius Sobreira