Pernambuco

DIREITO DA MULHER

“No nosso serviço, mais da metade dos casos chegam após 22 semanas”, diz obstetra sobre aborto legal

Médico avalia que criminalização aumentaria as mortes de meninas, “por complicações na gravidez, no parto ou suicídios”

Brasil de Fato | Recife |
O médico ginecologista e obstetra Olímpio Moraes é professor da UPE e diretor do Cisam - Divulgação/ UPE

O debate sobre o direito das mulheres ao aborto voltou a ser notícia, nas últimas semanas, não por um avanço para as mulheres, mas por uma ameaça de retrocesso. O presidente da Câmara Federal, o deputado Arthur Lira (PP de Alagoas) colocou em pauta o Projeto de Lei 1924/2024, que altera o Código Penal e passa a classificar como homicídio a realização de aborto após 22 semanas de gestação em quaisquer casos.

Para falar sobre o tema, o programa Trilhas do Nordeste desta semana entrevistou o médico ginecologista Olímpio Moraes, diretor Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros (Cisam/UPE) e com grande bagagem de realização de processos abortivos legais no Recife. “O direito ao aborto não obriga ninguém a abortar. Apenas dá autonomia à mulher, sem que o Estado decida sobre o corpo dela”, resume.

Caso aprovado, o projeto de lei vai retirar da mulher o direito ao aborto mesmo nos casos em que a gestação é fruto de estupro, gestação de feto anencéfalo ou ainda quando a gravidez apresenta risco de vida à mulher. Além de retirar o direito, torna um crime com punição maior do que o crime de estupro que ela pode ter sofrido. A proposta é assinada por uma série de deputados, inclusive o pernambucano Pastor Eurico (PL).

Perguntado sobre o impacto que uma mudança na lei como essa teria no trabalho dele, Olímpio destaca o elevado número de casos que passam das 22 semanas. “Aqui no nosso serviço, mais da metade dos casos passam deste período. Eles seriam todos negados, o que aumentaria o número de mortes dessas meninas, seja por complicações na gravidez, no parto ou por suicídios”, conta ele. Assista a íntegra da entrevista abaixo.

O médico destaca as consequências dessa gestação na vida de uma menina. “O corpo de uma criança de 10 ou 13 anos não está preparado para parir. Criança não pode ser mãe”, diz ele, mencionando ainda as complicações na gravidez como “principal causa de morte materna nessa faixa etária”. “E a segunda causa é o suicídio”, completa o especialista.

O médico cita ainda os elevados números de casos de depressão e de abandono escolar dessas crianças e adolescentes. “Se agirmos de acordo com a ciência, podemos diminuir esse sofrimento, prestar uma assistência a essa menina, tentar apagar o que aconteceu e permitir que ela tenha uma outra vida”, diz ele. “Mas se a gravidez continua, você perpetua esse sofrimento para o resto da vida”, completa. “Se tem políticos preocupados com o tema, deveriam lutar para que seus municípios tenham centros de atendimento às mulheres vítimas de violência”, sugere o profissional.

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O PL da Gravidez Infantil e a negligência da esquerda com a luta ideológica

O diretor do Cisam afirma que, sobre o tema, os especialistas recomendam o tripé: educação sexual para as crianças entenderem o que pode ou não pode, fácil acesso a métodos contraceptivos e direito ao aborto. “Mas eles querem fazer o contrário: são contra a educação sexual, depois dificultam o acesso a contraceptivos e obstruem o direito ao abortamento”, lamenta.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que todos os anos publica um Anuário, informa que 75% dos casos de estupro registrados no ano de 2023 foram contra meninas menores de 14 anos. Só de janeiro a maio de 2024, o Disque 100 recebeu, em média, 2 denúncias de estupro de vulnerável por hora, somando 7.887 denúncias, números que são considerados subnotificados, já que muitas crianças e adolescentes são incapazes de formalizar a denúncia.


"Aborto previsto em lei faz parte do rol de competências do médico obstetra. Se for uma questão que você não consegue explorar, então vá fazer outra especialidade", diz o médico Olímpio Moraes / Divulgação/ UPE

Nos casos de gravidez resultante de estupro, ou que coloque a vida da mulher em risco ou ainda as gestações que produzem fetos anencéfalos, nos três casos a mulher pode, pelas regras atuais, realizar aborto gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS). “A gente usa o Misoprostol, que induz a expulsão do feto, que nasce sem vida”, resume Moraes. O medicamento é um comprimido utilizado para tratar dor de estômago,  hemorragias uterinas pós-parto e para procedimentos abortivos.

Mas não é raro que funcionários de hospitais e às vezes até o sistema Judiciário tentem atrapalhar o exercício desse direito. Há ainda casos de abuso a crianças e adolescentes, em que a gestação é descoberta tardiamente, ou quando a família vive longe dos centros médicos para realizarem exames. São fatores complicadores que fazem uma gravidez passível de aborto legal se arraste por mais de 22 semanas.

O ginecologista questiona os deputados sobre a ideia. “Ninguém que é estuprada fica em casa querendo levar a gravidez até 22 semanas por sadismo. Quem acredita numa coisa dessas tem uma mentalidade doentia, acha que as mulheres são o ‘satanás’, odeiam elas”, reclama. “Dizer que o aborto é pecado é uma coisa, não vou contestar. Mas defender que mulheres sejam presas ou morram, isso aí é outra coisa”, diz ele, que cita que estes movimentos políticos sempre existiram, mas hoje estão mais organizados. “São baseados no ódio”, avalia.

No Balaio Cultural, a repórter Fátima Pereira convida o público a assistir ao curta-documentário Clandestinas, disponível no Youtube, contando a história de mulheres que, por dificuldades no acesso ao aborto, optam por realizar o procedimento de forma insegura.

Edição: Helena Dias