Por Leandro Pellizzoni
Em nenhum lugar deste país a paisagem do Sertão foi tão incorporada a uma identidade regional como é aqui no Nordeste. A caatinga, as serras pedregosas, os animais, as distâncias. A bravura de uma entidade presente nessas terras e que enfrenta as dificuldades e dela retira o mel da vida criou uma lenda: o vaqueiro.
Pessoas que fizeram um Brasil existir e sobreviver por muitas gerações. Mistura dos primeiros portugueses, os povos originários dessas terras e o gado trazido nas embarcações lusitanas com o caldo da geografia deste pedaço de chão.
Foi imortalizado na figura de Raimundo Jacó, vaqueiro exímio que foi morto por conta da inveja. Hoje a justiça vem se fazendo. Não pela sentença ao algoz mas pela celebração de sua memória, da sua vida e da valorização de uma profissão, de um modo de vida, de uma cultura que convive entre nós em tempos tão virtuais.
Reais são suas lutas, suas vitórias e sua fé, que até hoje move as montanhas de suas vidas fazendo minar águas doces nos rios da história. Pois a Missa do Vaqueiro, um grito de justiça no sertão pernambucano, relembra e reverencia a esta entidade mítica das terras secas porém férteis de gente honrada e vibrante.
Neste ano de 2024, foi realizada a 54ª Missa do Vaqueiro, em Serrita, sertão de Pernambuco, que reuniu vaqueiros da região para uma celebração de fé e de justiça para o povo forte e valente que muitas vezes não é lembrado da maneira como deveria. Em meio a poeira e debaixo de muito sol, o Padre Pedro Sérgio, natural da cidade, emocionou a todos com sua homilia.
Já dizem alguns estudiosos que toda tradição é inventada, elas são criadas a partir de uma necessidade. A missa do vaqueiro não é diferente. O padre vaqueiro, João Câncio, em suas andanças pela caatinga das terras do sertão pernambucano, nas áreas de Serrita, encontrou uma cruz em meio a imensidão. Informado ali da história da de Raimundo Jacó, decidiu realizar uma missa em homenagem ao vaqueiro.
Essa manifestação de respeito e valorização da figura de um excluído, marginalizado, de um pobre trabalhador dos sertões nordestinos, transformou-se em um gesto de justiça. Perpetuada até o século 21 atravessando épocas distintas da história do Brasil, essa tradição está sendo cada vez mais enraizada nessas terras de fé e trabalho.
Mesmo sendo um evento criado claramente com um propósito, essa cultura não está imune aos intempéries sociais-políticos-culturais que a modernidade (ou será a pós-modernidade) mobiliza sobre as cultura populares em todos os lugares. A missa do vaqueiro de Serrita sofre investidas das classes dirigentes da política local e também dos costumes que se transformam ao longo do tempo.
Vestimentas, músicas, meios de transporte, símbolos de um mundo em movimento, em transformação, atravessam a caatinga e pousam no Parque Nacional do Vaqueiro, local distante cerca de 30 km do centro de Serrita onde é realizada a celebração religiosa.
No dia da missa pode-se encontrar tanto os vaqueiros encourados (com suas vestimentas tradicionais da lida no mato) quanto os “agroboys” e “agrogirls” com suas fivelas reluzentes, chapéus enormes, calças jeans apertadas e botas de bico fino.
Os vendilhões também são fáceis de encontrar. Encontra-se desde bebidas alcoólicas de vários tipos e também os energéticos da moda como utensílios de plástico, roupas, comidas e lembranças. E como no local não há sinal de celular o comércio se faz da maneira tradicional: cédulas de dinheiro de papel, em matéria.
Mas a razão motivadora da criação da Missa do Vaqueiro, lá em 1970, que reuniu grandes nome da cultura da região (Padre João Câncio, Luiz Gonzaga e Pedro Bandeira) continua vibrante e bem presente naquelas paragens. Celebrar a vida e a cultura do vaqueiro, do nordestino que luta, que vive e que resiste apesar das dificuldades.
Texto publicado originalmente no Medium.
As opiniões contidas neste artigo não necessariamente refletem a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Vinícius Sobreira