Pernambuco

Coluna

Pedalando com Belchior

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Mais cedo desviei de pedestres na ciclofaixa da Agamenon Magalhães, que ocupou a calçada para “garantir a permanência de todas as faixas para carro” - Arquivo pessoal de Ivan Moraes
Em três semanas, foram nada menos que quatro mortes de pessoas que pedalavam no trânsito do Recife.

Miró disse que janela de ônibus era danado pra botar a gente pra pensar. Nunca vi o poeta da Muribeca pedalando, mas tenho a impressão de que diria o mesmo a partir do selim de uma bike.

Nesses dias, voltando do trabalho pra casa, o juízo começou a ir ainda mais longe que a magrela. Mãos no guidom e olhar atento a todos os movimentos da rua, quem escolhe o transporte ativo em duas rodas se acostuma a conversar consigo mesmo. Diálogo intenso e silente que, no meu caso, tem como trilha sonora Belchior cantando baixinho num fone que se equilibra no ouvido esquerdo enquanto o direito presta atenção em buzina, motor, latido e grito. Escolher bicicleta é exercitar os sentidos.

E nesse dia eu vinha no meu caminho, parte ciclofaixa esburacada, parte asfalto selvagem, parte ciclovia lisinha, parte ciclorrota que se confunde com pista de cooper. O cearense me diz ter medo de avião, mas meu susto só veio com um ônibus fazendo uma curva improvável e avançando pelo espaço exclusivo para bicicletas.

Mais na frente, um carrão bonitão deu-lhe uma esquerda sem olhar e quase meteu o parachoque na minha venta. À quase tragédia cotidiana, respondo com um polegar para cima e uma cara séria. Mentalmente, xingo os piores impropérios. Não dá pra arrumar briga. Um cabra que se transporta dentro de uma arma com uma tonelada é capaz de tudo.

Quando meu pirralha está na cadeirinha o cuidado é redobrado e a conversa gritada. “Tá tudo certo aí atrás?”, repito a cada sinal. Já virou rotina agora ele brigar pra ir sozinho, na própria bicicleta em que já se equilibra sem rodinha. Tarefa de pai é dizer que “não” até que seja seguro. Quando será seguro? Quem dera garantir que esse ano não morremos.

Vez em quando cruza uma pessoa conhecida. Grita meu nome e nem sempre eu consigo saber quem é. Mas levantar o braço com o mesmo polegar pra cima é mais fácil. Dessa vez com sorriso e muitas vezes um grito de “booora!”, que mostra reconhecimento. Eu sou pessoa. É curioso como ciclista gosta de se cumprimentar.

A bicicleta é o transporte do amor, eu penso enquanto Antônio Carlos confessa que mudar as coisas interessa muito mais. Concordo e grito junto com ele enquanto percebo que cheguei na primeira ciclofaixa inaugurada no Recife, no bairro da Torre. O espaço virou pista de caminhada e hoje é proibido para bicicletas. Sigo pertinho dos carros no mesmo lugar em que há poucos dias uma ciclista foi atropelada e acabou morrendo.

Em três semanas, foram nada menos que quatro mortes de pessoas que pedalavam no trânsito do Recife. Três delas em lugares em que o Plano Diretor Cicloviário, que tem mais de 10 anos, previa a construção de rotas cicláveis. Todas elas atropeladas por motoristas profissionais numa conjuntura em que, nos ônibus, motoristas também têm que passar troco. Se a média de ciclistas que vêm a óbito nas nossas violentas ruas é de 22 por ano, mais do que dobrou neste pequeno intervalo.

O aumento de gente de bicicleta sendo atropelada é mais um sintoma de um trânsito cada vez mais assassino. Dados da própria Prefeitura do Recife mostram que o número de sinistros com vítimas mais do que dobrou em dois anos. Não está fácil pra ninguém, eu penso enquanto paro no sinal e vejo um jovem pedindo comida com um cartaz escrito em mau português.

O compositor sobralense fala de galos, noites e quintais. Lembro de uma infância entre o mangue e a bola-de-gude no asfalto da rua em que vovó morava. Não está feliz, mas não está mudo. Eu também canto muito mais enquanto uma lágrima escorre do meu olho. Não é tristeza, não é alegria. Eu choro de música e de esperança.

Mais cedo desviei de pedestres na ciclofaixa da Agamenon Magalhães, que ocupou a calçada para “garantir a permanência de todas as faixas para carro” numa das maiores avenidas da cidade. Fico confuso e sem entender como seguimos na vanguarda do atraso enquanto boa parte do mundo já põe em prática estratégias para reduzir a quantidade de veículos automotores nas suas ruas.  Mudança climática, qualidade de vida, mobilidade, saúde, violência no trânsito, tudo a ver com tudo.

A autoridade municipal diz que não é com ela. Que já fez demais colocando um monte de ciclovia pintada em rua pequena pra não atrapalhar os carros. Aos domingos e feriados, cones e servidores terceirizados fazem a frente pra quem quiser dar um rolé em segurança. De segunda a sábado, não.  Durante a semana o sinal segue fechado para quem insiste em questionar se ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.

Edição: Vinícius Sobreira