Conviver é escuta. Histórias que se encontram no esquecimento das opressões são descobertas de mundo
A independência é um pressuposto neoliberal, constituído no capitalismo como algo associado aos homens, sobretudo os que recebem salário, conhecidos como os provedores do lar. Tal conceito, cuidadosamente organizado pelo patriarcado, constroi a imagem do homem liberto e feliz, que na maioria dos casos só existe no privilégio padrão, contraposto à imagem de mulheres dependentes e desumanizadas.
Em tempo que compreendemos que a independência e dependência são antagônicos importantes na consolidação do processo de dominação sobre as mulheres, especialmente as mulheres negras, nos deparamos com a consequência histórica que cultua e sobrecarrega estas como provedoras do cuidado, seja ele de si mesma, de familiares adultos, idosos, da infância e de jovens/adultos/crianças com deficiência, acarretando um amplo conjunto de invisibilidade, desigualdades e injustiças.
Lembro de um texto da intelectual Karla Garcia Luiz que falava do cuidado na dependência complexa de pessoas com deficiência como uma questão de justiça que dizia o seguinte: “as implicações das discussões do cuidado estão no reconhecimento da dependência e na compreensão de relações de interdependência ao longo da vida”, ou seja, onde exista o suporte para quem cuida e o poder de agência para quem é cuidado, a interdependência como caminho à ética, em uma troca do que cada um tem a oferecer.
Ao discutir a dependência, quando estamos falando da experiência na/da deficiência, existe a necessidade de centralizar um debate sobre o cuidado, entender como o capital atua sobre os corpos. Trazer uma necessidade de ética (realinhamento inclusive do conceito) na austeridade do Estado, na busca por qualificar propostas no âmbito do cuidado reafirmando como disse a autora supracitada Karla Garcia: “os pressupostos feministas, antirracistas, anticapacitistas e anticapitalistas reiterando o compromisso político de não deixar nenhum corpo ou mente para trás”.
Sabido disso e motivada pela necessidade de compreender o recorte territorial do agreste meridional de Pernambuco, como professora atuante no território que sou, busquei desenvolver um trabalho de pesquisa intitulado: uma discussão acerca da ética do cuidado na experiência da deficiência, no qual buscamos através das histórias de vidas das cuidadoras (mulheres agrestinas), fazer um debate acerca da ética do cuidado, bem como, a partir das histórias também de pessoas com deficiências cuidadas por estas, debater a necessidade urgente de políticas do cuidado como uma demanda pública que requer respostas.
Essa era a intenção acadêmica, pois, ao entender o debate, achei que poderia analisar. Entretanto, em um reconhecimento de arrogância e incapacidade, percebi que a mim caberia mais o lugar de escuta.
Ao ler a obra de Débora Diniz em conjunto com Ivone Gebara, “Esperança Feminista” (2022), conheci o que Débora Diniz chamou de perturbação do dicionário, nos apresentando a palavra escutadeira. Ela alega o uso do termo com a seguinte passagem: “há treinamento nesta entrega, há escuta, mas o treino é antes um gesto ético que acadêmico. Os livros nos ajudam a criar novas palavras e a desobedecer aos dicionários patriarcais, como fazem os livros feministas ou a literatura escrita por autoras decoloniais, que nos mostram como o racismo está entranhado no patriarcado. Escutamos enquanto lemos ou assistimos a filmes, mas, principalmente, escutamos na convivência com outras mulheres”.
Nesse sentido, surgiu em mim o interesse em aprender a escutar e não apenas ouvir, mas escutar profundamente sobre o cuidado, pois compreendi que seria o mesmo que apreender sobre o mundo, porque são nas relações de cuidado que nos fundimos como ser, corpo, como gente.
Eu compreendi que escutamos na convivência, quando observei a dor profunda do isolamento tendo como justificativa o cuidado e o capacitismo; na angústia sentida pela minha irmã, que é uma mulher com deficiência; na necessidade da minha mãe de contar sobre sua vida a cada nota de silêncio; na casa de outras mulheres cuidadoras que ao me receberem diziam “vamos entrando”; e das pessoas com deficiência que insistiam em “ser um”.
Foi na alegria de momentos ínfimos, na revolta da injustiça, no erro que revelou o lugar de opressora que existe dentro de mim que aprendi um ponto de partida na tarefa de me tornar escuta; silenciar-me.
Conviver é escuta. E histórias que se encontram no esquecimento das opressões são desvelamento de mundo. Desisti de analisar e confesso que com isso compreendi melhor o cuidado, quando expandi parte da minha ignorância.
Em um desses momentos, enquanto eu ouvia uma cuidadora, me foi perguntado: onde você vai colocar isso que anotou? Perguntei de volta: você quer que eu mostre em algum lugar específico? Ela disse: só de você escutar, me fez bem, mas eu queria mesmo era que todo mundo soubesse o que a gente passa!
Não conheço e nem alcanço “todo mundo”, entretanto acho a escrita um excelente registro de denúncia. Assim, decidi que nas próximas colunas irei compartilhar a convivência da escuta através das histórias dessas mulheres e de pessoas com deficiência, as quais, diferentes das pesquisas acadêmicas, serão apontadas por nomes, raça, sorriso, desabafo e classe, sem nenhum tipo de análise, estarão só elas e o que tiver de ser dito, pois, como disse Débora Diniz: precisamos de outras mulheres que nos ensinem a escutar, por isso quanto mais diverso for esse movimento, maior será a nossa capacidade de transformação.
Edição: Vinícius Sobreira