Nesta quinta-feira (24), duas militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) embarcaram para o Haiti, para se unirem a uma missão de solidariedade internacional desenvolvida pelo movimento. A dupla, que atuava no Recife, integrará a Brigada Jean-Jacques Dessalines, onde somam forças a outros militantes do MST e de organizações de outros países para contribuir com o trabalho político e social no país caribenho.
Em conversa com o Brasil de Fato Pernambuco, Tércia Lemos conta que vai contribuir com a tarefa de educação popular e formação política no Haiti. “Ainda não tenho muitos detalhes, mas o foco prioritário são as mulheres. Existem movimentos fortes de mulheres revolucionárias e com as quais não estamos conseguindo estabelecer um bom diálogo, já que no momento a nossa Brigada está formada apenas por homens”, conta ela.
Tércia conta que a missão internacionalista não estava no “radar”. “Eu não havia me planejado para isso. Mas quem é da militância, principalmente num movimento como o MST, tem que estar aberto. Foi uma surpresa boa”, celebra. Lemos está empolgada, mas se diz ciente dos desafios. “A expectativa é grande, mas com os pés no chão, porque a realidade do Haiti não está fácil”, pondera. “Quero aprender e espero conseguir contribuir. Quem sabe nesse período acontece a revolução que o povo almeja?!”, diz ela.
Ao seu lado, vai a comunicadora Cha Dafol. No Haiti, ela será correspondente internacional do Brasil de Fato e do canal televisivo Telesur, que tem base na Venezuela, mas se propõe a trazer notícias de toda a América Latina. “Estamos embarcando para Caracas, na Venezuela, onde vamos passar três semanas. Será um período de estágio na Telesur”, explica Dafol, confessando estar “muito empolgada” com a missão de correspondente do canal televisivo. Durante as três semanas, Tércia conhecerá a experiência de uma comuna popular em Sucre.
Mas a tarefa de Cha na Brigada Jean-Jacques Dessalines é na área de comunicação e juventude. Dafol deve contribuir com a comunicação de movimentos populares que atuam na ilha, além de dar capacitação técnica para jovens, formando novos comunicadores para produzirem conteúdos de rádio e vídeo sobre política, sociedade e meio-ambiente no Haiti. “Estou bastante aberta e disposta para ver o que vai acontecer. Quero muito contribuir, ter tarefas. Mas a primeira missão é aprender o idioma local, o crioulo, além de me adaptar”, conta ela.
Um outro pernambucano já integrou a brigada. André Soares, que viveu a infância e adolescência entre o Ibura, no Recife, e o município de Escada, na zona da mata, se tornou militante do MST ainda na juventude. Em 2017 foi enviado para o Haiti, numa missão que durou dois anos e meio, retornando em 2020. “O principal conselho que dou é o de estarem abertas, se permitirem compreender os processos culturais, sociais e políticos do país. É o desafio de entender que estão noutro território, com formas de pensar, viver e se organizar diferentes”, diz ele. “Não dá para pensar que as coisas lá vão funcionar como aqui no Brasil”, completa.
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Sobre o cenário que as colegas vão encontrar no Caribe, Soares descreve o que viu no Haiti. “Não existe a presença do Estado”, resume ele. “Não existe Estado para garantir questões básicas, como acesso a saúde, educação, segurança e alimentação. A estrutura estatal é tão frágil que sequer consegue garantir um processo eleitoral seguro”, diz André. O país tem vivido, há anos, uma disputa entre milícias armadas que controlam territórios. “Isso é resultado de um intervencionismo internacional, especialmente dos Estados Unidos, tentando colocar a burguesia haitiana no poder”, avalia André.
A presença internacional é perceptível, segundo o ex-brigadista, especialmente no tema da alimentação. “O Haiti era autossuficiente na produção de arroz e carne de porco, por exemplo. Mas os EUA desestabilizaram o país para abrir espaço para exportar seus produtos, como arroz e enlatados, que hoje chegam no país com preços mais baixos que os produzidos na própria ilha”, explica ele. “Então existe alimento no país, mas não existe política pública de fomento à soberania alimentar, o que resulta num déficit nutricional e na fome em muitos lugares”, lembra Soares.
A fraqueza estatal resulta em cidades com elevado déficit de saneamento básico e mesmo de pavimentação de ruas. Mesmo territórios mais urbanizados, como a elitizada comuna de Pétionville, na capital Porto Príncipe, convive com problemas de abastecimento elétrico. “Não são elas, nem a Brigada e nem nenhum de nós estrangeiros que vamos resolver os problemas do Haiti. É o povo haitiano que precisa alterar sua realidade, aprendendo com experiências internacionais, sim, mas construindo à sua maneira as melhorias para o país”, diz André Soares.
Em 2023, o MST em Pernambuco enviou Tércia e Cha para um curso de formação política com militantes de diversos países da América Latina, com duração de 30 dias, na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), centro formativo do MST em São Paulo. “Fiz porque queria essa formação. Mas desconfio que fomos mandadas para lá já pensando nessa missão”, diz Cha Dafol. “Quando voltamos, no dia seguinte já nos chamaram para o Haiti”, lembra ela. “A formação foi decisiva para a nossa decisão”, avalia.
Perfis
Tércia Lemos, 60 anos, é baiana e funcionária pública aposentada da antiga Telebras e militante do Partido dos Trabalhadores (PT) há décadas. Conheceu o MST ainda na Bahia, prestando apoio a acampamentos do movimento. Através do trabalho, foi transferida para o Recife (PE) em 1997, para colaborar com a antiga Telpe. Seguiu na luta partidária e sindical, junto ao Sinttel.
Sempre acompanhada de uma bicicleta e seus equipamentos de proteção, ela é cicloativista na capital pernambucana. Já aposentada, durante a pandemia da covid-19, foi contribuir numa cozinha solidária e logo ingressou no Mãos Solidárias, iniciativa liderada pelo MST, movimento que passou a militar, participando ativamente das campanhas de produção e distribuição de alimentos.
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Cha Dafol, 37 anos, é nascida na França, filha de pais franceses, mas aos 20 anos veio morar no Brasil, em Porto Alegre (RS). Aprendeu português, morou no Rio de Janeiro e desde então tem trabalhado com comunicação e arte, mais especificamente com cinema e música. Conheceu o MST por meio de amigos e frequentando as feiras de produtos agroecológicos.
Também cicloativista, Dafol decidiu, em 2021, conhecer parte do litoral nordestino em uma viagem de bicicleta, saindo do Recife até Salvador. Foram 4 meses sobre duas rodas, mas no caminho Cha parou e foi acolhida em muitos assentamentos do MST. Ao fim da viagem, estava decidida a viver no Recife e se somar às fileiras do Movimento Sem Terra. Em 2024, conseguiu sua cidadania brasileira, passando a ter dupla nacionalidade.
A Brigada Jean-Jacques Dessalines
A brigada, cujo nome homenageia um dos comandantes da revolução haitiana, atua em todo o território do Haiti. Ela reúne militantes de movimentos sociais da Via Campesina e da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba Movimentos). Fundada em 2009, ela é uma resposta à ocupação militar internacional promovida pela ONU para a “estabilização do Haiti” (Minustah), liderada pelo Exército Brasileiro. Após o terremoto de 2010, a brigada foi ampliada para reerguer estruturas básicas de sobrevivência para o povo haitiano, a exemplo das milhares de cisternas de água construídas.
Atualmente, a base da Brigada fica no departamento de Montrouis. O ex-brigadista André Soares conta que os principais eixos de atuação do grupo são: agroecologia e soberania alimentar, com foco no fortalecimento da produção de sementes e no reflorestamento a partir de sistemas agroflorestais; o eixo da comunicação popular e juventude, através da formação para a produção de conteúdos de áudio e audiovisual sobre o país; e o eixo de formação política, junto a movimentos do campo e da cidade, especialmente movimentos de mulheres.
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Edição: Nathallia Fonseca