Vivendo no século 21 é difícil mensurar o tamanho da coragem, espírito de luta e resistência que guiaram uma mulher negra, jovem e escravizada a se insurgir contra os seus senhores, no estado do Piauí, nos anos 1770. Esperança Garcia foi esta mulher que escreveu uma carta endereçada ao governador da capitania, denunciando os maus-tratos que ela, outras mulheres e crianças negras sofriam na Fazenda Algodões, no município de Oeiras, sertão piauiense.
Afastadas de suas famílias, sofriam violências que foram relatadas em detalhes no manuscrito redigido por Esperança. Ainda se estuda sobre possíveis respostas ou o impacto que o carta teve na dinâmica de exploração do trabalho na região. Esperança demonstra, sobretudo, a autoconsciência enquanto mulher, negra e humana, detentora de direitos, apesar de toda a desumanização e violência impostas pelo regime escravocrata.
A carta só foi descoberta em 1979, no Arquivo Público do Piauí, pelo professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Luiz Roberto de Barros Mott. O documento é considerado uma petição e habeas corpus por especialistas. O mais provável é que ela tenha aprendido a escrever com padres jesuítas que catequizavam pessoas negras e indígenas na região. Por reivindicação dos movimentos negros piauienses, o dia 6 de setembro, data em que Esperança escreveu a carta, se tornou o Dia Estadual da Consciência Negra no Piauí.
Após solicitação da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra do Piauí, em 2017 a seccional local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PI) reconheceu Esperança como a primeira mulher advogada no estado. Em 2022 o reconhecimento se deu em âmbito nacional, com Garcia sendo reconhecida pela OAB como a primeira advogada do Brasil.
Para saber mais sobre essa personagem da nossa história o Brasil de Fato Pernambuco entrevistou a advogada Mariana Moura, professora da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Moura fez parte da comissão que elaborou os pedidos de reconhecimento de Esperança como advogada. Assista à conversa no programa Trilhas do Nordeste.
Em tradução livre para o português atual, o manuscrito do século 18 trata da realidade das mulheres escravizadas na Fazenda Algodões.
“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada.
Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da Fazenda Algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal.
A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu, sendo uma criança, que lhe fez extrair sangue pela boca. Em mim, não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei.
A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar.
Peço a Vossa Senhoria, pelo amor de Deus, ponha aos olhos em mim ordenando, digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha".
Em setembro de 2024, foi lançada a segunda edição do "Dossiê Esperança Garcia: símbolo de resistência na luta pelo Direito", uma iniciativa do Núcleo de Pesquisa sobre Africanidades e Afrodescendências (AFARADÁ), da Universidade Federal do Piauí, o Coletivo Antônia Flor, o Instituto Esperança Garcia, a OAB Editora, a EDFPI e a Prefeitura de São Paulo. A obra traz os fundamentos do reconhecimento de Esperança como a primeira advogada do Brasil.
Edição: Vinícius Sobreira