Em meio ao crescimento da letalidade policial, o prefeito do Recife propõe armar a Guarda Municipal
Há cerca de um mês, com muita alegria e a ciência do compromisso histórico que demanda o papel que encarno e represento hoje, inaugurei essa coluna no Brasil de Fato. Como não poderia ser diferente, na ocasião trouxe à tona o absurdo de ser a única mulher negra eleita vereadora do Recife. De alguns recebi apoio e solidariedade. Mas, de muitos, recebi ataques e a acusações de que estaria me vitimizando ou que tudo não passava de “mimimi”.
Apesar do tema que quero abordar hoje ser outro, faço esse resgate inicial porque a precursora de toda violência física socialmente aceita é a violência simbólica, com a naturalização do inconcebível.
Nesse sentido, para compreendermos o tamanho do desafio a ser enfrentado para alcançarmos uma segurança pública humanizada, na qual os casos de racismo e violência policial realmente sejam isolados, precisamos voltar ao surgimento das nossas forças policiais.
O embrião da polícia brasileira surge no contexto colonial, em 1530, em meio à divisão do Brasil em capitanias hereditárias. Posteriormente, em 1809, a Coroa Portuguesa cria a Polícia Militar, com formatação mais próxima da qual conhecemos hoje. Ao longo desse período, imersa no contexto estrutural de ojeriza ao povo negro - vindo da África escravizado em um processo indescritível de desumanização, a Polícia Militar já surge com o objetivo de proteger e servir aos interesses de colonizadores, abusadores e escravocratas.
Desde então, a partir do flerte entre as polícias e o poder, os arquétipos que precisam ser defendidos e os que precisam ser combatidos estão muito evidentes, ainda que tacitamente, na atuação desses profissionais. Para mudar essa realidade não adianta punir “casos isolados” sem que haja um duro e perene enfrentamento da estrutura racista e elitista que coopta a mentalidade dos nossos agentes da segurança pública.
Além disso, como se esse cenário já não fosse suficientemente desafiador, desde a eleição de Bolsonaro passamos a enfrentar um processo de retomada de ideologização das nossas forças policiais, com discursos de ódio, violência e racismo sendo proferidos abertamente pelo então presidente.
Apesar de eleitoralmente Bolsonaro ser carta fora do baralho, infelizmente o bolsonarismo se proliferou, a extrema direita brasileira vem se consolidando e gerando quadros como Tarcísio de Freitas, Ratinho Júnior, Cláudio Castro e outros que abertamente deram carta branca para que policiais agissem com truculência e violência, muitas vezes justificando o extermínio dos corpos negros sob a égide dos “efeitos colaterais de uma política de segurança pública firme”.
Essa combinação de fatores resulta no crescimento vertiginoso dos casos de violência e letalidade policial no Brasil, direcionados quase em sua totalidade ao povo negro e periférico.
O que dizer de uma polícia que mata um jovem negro com 11 tiros pelas costas por furtar - desarmado – sabão e, a mesma polícia, protege e tira da cena de crime um assassino pego em flagrante com seu carro de luxo importado? O que dizer de uma ocorrência em que um policial simplesmente joga um cidadão de cima de uma ponte em um córrego? Ou ainda que agride com golpes de cassetete e mata-leão uma idosa de 63 anos, em casa?
Todos esses casos aconteceram recentemente em uma São Paulo governada pelo bolsonarista Tarcísio de Freitas, o mesmo que após uma das operações mais sangrentas da polícia paulista, realizada no início do ano, em Santos, quando 54 pessoas foram assassinadas, disse “pode ir na ONU, na liga da justiça, no raio que o parta, que eu não estou nem aí”. Está provado: palavras também podem matar. Não por acaso, a letalidade policial no estado cresceu 138% só no primeiro trimestre de 2024, em comparação ao primeiro trimestre de 2023, o primeiro da gestão Tarcísio.
Contudo, a violência policial não é um infortúnio exclusivo de São Paulo. Também ao longo da última semana, nos deparamos com inúmeros casos semelhantes em todo o país. Em Sobral, no Ceará, policiais descem de uma viatura, abordam jovem de 18 anos e quebram seu celular por ele ter se negado a desbloquear o aparelho. Em seguida, o agridem com socos e pontapés, na frente de seus pais.
Já na Bahia, um outro jovem, de 17 anos, foi executado a tiros porque um policial militar de folga alegou pensar que seria assaltado. Na mesma ocorrência, um outro jovem, de 19 anos, também foi baleado, mas sobreviveu. Ambos estavam rendidos, desarmados e deitados com o rosto no chão. O policial disparou 12 tiros contra eles e alegou legítima defesa.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2024, o Brasil registrou 6.393 mortes por intervenções policiais em 2023, o que significa 3,1 mortes por 100 mil habitantes. Considerando os últimos dez anos (2013 a 2023), a letalidade policial no país aumentou 188,9%. Ainda segundo o anuário, as vítimas fatais dessas intervenções policiais foram predominantemente pessoas negras (82,7% dos casos). A publicação destaca ainda que o risco relativo de um negro morrer em uma intervenção policial é 3,8 vezes superior ao de um branco. Entre os policiais mortos, a maioria também é negra, de acordo com a Agência Brasil.
Infelizmente, Pernambuco não foge à trágica regra do cenário brasileiro. Também há cerca de uma semana, um motociclista de aplicativo, de 23 anos, foi assassinado à queima-roupa na cidade de Camaragibe, porque um sargento da polícia militar se negou a pagar uma corrida de sete reais. O jovem estava desarmado e foi assassinado enquanto perguntava “você vai atirar mesmo”?
Infelizmente, esse também não é um caso isolado por aqui. Segundo a Rede de Observatórios de Segurança, em levantamento feito pelo G1, 117 pessoas morreram em decorrência de ações policiais em 2023, um aumento de quase 30% em relação a 2022. Entre as vítimas, assustadores 95,7% eram negras. Ainda de acordo com a sistematização realizada pelo G1, com base em dados da própria SDS-PE, os casos de letalidade policial aumentaram em 30% no início de 2024. Um show de horrores.
Entretanto, diante de todo esse cenário, sabe o que mais surpreende? É que em meio ao crescimento assustador da violência, racismo e letalidade policial no estado, o prefeito da nossa capital – onde se concentra “o grosso” dos nossos indicadores negativos – propõe armar a Guarda Municipal da cidade.
Constitucionalmente, as guardas municipais estão fora do escopo da segurança pública, especificado no artigo 144 da Constituição Federal. Sua atividade fim é a de proteger bens, serviços e instalações de suas respectivas cidades, sendo vedada, assim, sua atuação em atividades investigativas ou ostensivas. Mas, para além do estrito direito legal, que não cabe no caso, do ponto de vista prático, a medida também não contribui em nada para a redução da violência.
A conta é simples: quanto mais armas, inevitavelmente mais criminalidade e mortes. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada aumento de 1% no número de armas em circulação, a taxa de homicídios cresce em 1,1% e a taxa de latrocínio em 1,2%.
Assim, gostaria de firmar dois compromissos importantes com o recifense e o pernambucano em geral, afinal de contas a realidade da nossa capital influencia todo o estado. O primeiro deles é que a minha luta não será para combater a figura do policial, mas a estrutura na qual estão imersos, cobrando a revisão do currículo e do formato das academias de polícia. O segundo é que me comprometo com o desenvolvimento de iniciativas legislativas integradas que venham a reduzir todas as formas de violência policial, colocando-me, desde já, completamente contrária ao armamento da nossa Guarda Municipal.
A paz é uma cultura que não se alcança à mão armada.
Edição: Vinícius Sobreira