Dessa vez, o governo Lula privilegiou a classe C. Um passo histórico na trajetória do lulismo
O anúncio, por parte do Governo Federal, da isenção do pagamento do Imposto de Renda para pessoas que ganham até R$5 mil foi um grande acerto. Mais que isso, representa uma verdadeira mudança estrutural em um importante aspecto do conflito distributivo no Brasil: a taxação sobre a renda.
Insisto: a medida de isenção de pagamento do IR para mais de 10 milhões de pessoas no país é histórica e terá grande impacto socioeconômico. Tão grande que poderá incidir decisivamente na disputa política. Chegaremos a esse aspecto político um pouco mais a frente. Antes, vamos entender do que trata a proposta de isenção.
Localizo essa medida como a maior tentativa de mudança estrutural em favor das camadas populares já feita pelos governos petistas - e muitos não estão se dando conta disso. A profundidade das consequências da isenção anunciada só pode ser comparada aos efeitos da política de valorização do salário mínimo, responsável pelos efeitos sociais e econômicos mais benéficos e duradouros dos governos Lula e Dilma.
A proposta do governo Lula 3, apresentada por Haddad, combina duas ações. Numa ponta, a isenção de pagamento do imposto de renda para as camadas populares que recebem até R$5 mil mensais e alívio das alíquotas para os que ganham entre R$ 5 mil e R$7 mil.
Noutra ponta, a elevação da taxação para quem ganha a partir de R$600 mil por ano, ou seja, os mais ricos do país. Trata-se, portanto, de uma proposta de isenção a ser sustentada fiscalmente pela lógica progressiva da taxação de renda. Estamos falando de uma reforma de renda que, a partir de um viés igualitário, mudará estruturalmente o nosso modelo.
Ao contrário do que dizem alguns críticos à esquerda do governo, portanto, não são os mais pobres que irão pagar essa conta. Tampouco será a classe média tradicional, que vive confortavelmente, não será ela que se beneficiará com a medida. A beneficiária da isenção será uma extensa camada das classes trabalhadoras.
No Brasil, cerca de 90% da população possui renda de até R$3.400. O número é assustador e mostra a precariedade do nosso povo, mas ao mesmo tempo nos revela a escala do impacto positivo da isenção. A beneficiada com a nova isenção total será a fração mais popular da classe média. Trata-se da famosa classe C.
O impacto econômico de viés popular é imenso. A Unafisco estima que nada menos que R$50 bilhões deixarão de sair das classes trabalhadoras direto para o Estado em forma de imposto, ficando livres para uso popular e para voltar ao comércio e girar a economia. Isso é importantíssimo, já que pelo menos 65% do PIB do país vem do consumo das famílias.
Caso aprovada a isenção, teremos aumento do poder de consumo das camadas populares, assim como ocorreu após o estabelecimento da política de valorização do salário mínimo, no início deste século.
E aqui chegamos ao impacto político, que pode ser ainda maior. É exatamente essa classe C a camada popular que vem sendo cooptada pela direita nos últimos anos. Ampliada durante os 12 anos de governos petistas, que elevaram a renda média dos trabalhadores, essa fatia da população, no entanto, há muito tempo se ressente de suas condições de vida.
Cada vez mais desejante por consumo e ao mesmo tempo achatada por uma renda espremida, vivendo os dilemas da vida precária nos grandes centros urbanos do país, a classe C virou alvo fácil para a direita. Podemos dizer que é nesse estrato que o bolsonarismo amplia sua base popular.
Já o lulismo, apesar de ter “criado” a classe C, viu parte desse público voltar-se contra ele. Permaneceram fiéis a Lula as frações que foram e continuam sendo sua prioridade: as classes D e E, os pobres e muito pobres, foco de programas de combate à fome, acesso à moradia, a luz elétrica, etc.
Na verdade, o lulismo é uma força política engajada em promover pactos com a elites econômicas em favor desses mais pobres, o que não exige necessariamente mudanças estruturais, já que políticas sociais compensatórias solucionam a questão, ao menos a curto prazo.
Esse é o público focal de Lula, inclusive emocional e pessoalmente, me parece. Essa é a fração popular onde se localizaria sua mãe, Dona Lindu, por exemplo. Ele se identifica com essas pessoas e já pronunciou várias vezes que sua missão de vida é garantir a todo brasileiro três refeições ao dia.
Dedicado ao combate à fome e à criação de um pacto civilizatório mínimo no país, o lulismo sempre beneficiou as classes E e D - às vezes em detrimento da classe C. Esta última, como já dissemos, virou uma espécie de “nem, nem”: nem tem uma vida confortável, nem pôde acessar por muito tempo os programas de transferência de renda do governo. Os benefícios econômicos que teve geralmente foram seguidos de endividamento com bancos privados.
Ao mesmo tempo, essa classe C é atingida pela redoma cultural das redes sociais, tem acesso à informação, se mostra desejante e não encontra condições e oportunidades para dar passos além.
Dessa vez, o governo Lula privilegiou a classe C. Considero esse fato um passo histórico na trajetória do lulismo. Lula, com a isenção, injeta uma contradição na relação entre a classe C e a direita. Num terreno onde a insatisfação foi regada com temas religiosos e pela ideologia neoliberal, a isenção do imposto de renda introduz um ganho material inconteste, trazendo o debate de volta aos aspectos concretos da luta de classes, contrapondo essa fração da classe trabalhadora aos interesses dos ricos.
Esse é o movimento mais forte que o lulopetismo dá em direção à classe C desde seu apogeu. O criador finalmente olha no rosto sua criatura e lhe chama para uma conversa.
O PT, o governo e a esquerda devem dar consequência política a esse movimento real e tratá-lo com a importância estratégica que tem. A proposta de isenção deve ser fortemente defendida e alçada à condição de peça fundamental na batalha pela opinião pública do próximo período, sem prejuízo a outras pautas importantes.
Não tenho dúvida que, do lado progressista, essa é a medida mais importante e estrutural para aliviar a precária vida das classes populares do Brasil. Esse é um debate real, que toca as pessoas na pele, na lida diária, nos sonhos e possibilidades de vida.
É preciso afirmar, ao mesmo tempo, que para beneficiar a classe C não podemos pressionar as classes mais empobrecidas. Aliás, a extrema direita cresceu estimulando o ódio da classe C contra os benefícios aos mais pobres. Não podemos alimentar esse ciclo, em nenhuma de suas direções. A disputa é com os de cima.
A bancada progressista no Congresso deve encontrar outras formas de equilíbrio da conta fiscal que não sejam a de tocar no BPC e/ou mudar a política de valorização do salário mínimo. Taticamente falando, a proposta de isenção do governo ajuda esse movimento, pois inverte a lógica da pauta e dá ao lado de lá o ônus de pronunciar cortes para os trabalhadores, em todas as suas frações. Os movimentos sociais e a bancada progressista devem somar forças nesse sentido.
O mercado, claro, ficou insatisfeito, mas tem diante de si um escudo de difícil penetração: a satisfação de esmagadora parcela da sociedade brasileira, como mostra a última pesquisa da Quaest, na qual 75% dos brasileiros afirmam aprovar a medida do governo. Surpreendido pelo movimento de Lula, está sendo instado a colocar-se contra a vontade popular majoritária, já manifesta. Se avançar muito sobre isso, via mídia, dará passo em falso.
Está aberta uma janela para disputa da opinião pública com o mercado e a mídia sobre algo que toca fundo a vida dos trabalhadores, o que pode dar ao governo e ao campo popular mais energia para enfrentamentos futuros. Por isso, defender essa medida da isenção, com ênfase, num debate público contra o mercado, é um passo fundamental.
Recuperar frações expressivas das camadas populares é tudo o que os progressistas e o nosso governo precisam. Além deles, também a democracia, que morre um pouco mais cada vez que o mercado e a acumulação de riquezas avançam. Defender a isenção, portanto, é defender a democracia e o povo brasileiro.
Façamos o bom combate.
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Edição: Vinícius Sobreira