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O que o Natal tem a ver com o extermínio do povo negro?

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“Ao acionarmos a negritude de Jesus, falamos que ele se identifica com as dores das mães que perderam seus filhos para a violência estatal, assim como Maria perdeu Jesus para o Império Romano” - Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
O Deus todo-poderoso se tornou uma frágil criança, criada em Nazaré, região periférica da Galiléia

Não sei para você, mas para mim, Jesus foi apresentado como um salvador de almas, que tem como objetivo alcançar corações e mudar costumes principalmente ligados à moralidade. O Jesus que chega normalmente nas grandes rádios e programas evangélicos está querendo a conversão espiritual para uma religião e pouco se importa com o corpo ou com o tempo presente.

A teologia dominante no Brasil parte de uma experiência que nega os problemas terrenos, produz uma realidade paralela entre o mundo e a igreja. O Natal, para as pessoas cristãs, não se trata de roupas novas ou Papai Noel. Cremos que um dos processos mais revolucionários da história aconteceu: Deus quis ter um corpo — pobre, negro, matável e periférico.

A encarnação é uma das mais potentes manifestações religiosas que temos na experiência cristã. O Deus todo-poderoso se tornou uma frágil criança, criada em um território chamado Nazaré, considerado periférico na região da Galiléia.

O Jesus da igreja cristã euro-americana não tem território e não se importa com o contexto de sua época. É o Jesus do céu e não o Jesus de Nazaré. Pior que faz sentido mesmo: um povo que em sua maioria não experimentou a miséria, fome, escravidão, violência, extermínio sistemático ou coisificação, não tem motivos para tentar resolver seus problemas na Terra.

A Teologia da experiência branca não tem um corpo, por isso não sente fome; nem passou pela tortura ou pela escravidão, por isso consegue reproduzir uma fé a favor da tortura; nunca foi preso injustamente ou levou 80 tiros por motivos fúteis e é por este motivo que nenhuma destas questões se tornam problemas teológicos que precisam ser respondidos.

O teólogo afro-americano James Cone diz:

“a maioria dos seminários enfatiza a necessidade de ferramentas apropriadas para fazer teologia. O que sempre significa ferramentas brancas, ou seja, conhecimento da língua e pensamento das pessoas brancas. Não reconhecem que outras pessoas também pensaram em Deus e têm algo a dizer sobre isso, têm algo a dizer sobre a presença de Jesus no mundo. Meu ponto é que o contexto social-histórico de cada uma decide não apenas as perguntas que dirigimos a Deus, mas também, o modo ou forma das respostas dadas a essas perguntas.” (James Cone)

Para Cone, a experiência negra nos traz uma hermenêutica diferente e por isso precisamos nos perguntar como as narrativas bíblicas podem contribuir para um mundo mais justo para o povo afrodescendente. Apesar de não parecer, queria dizer que esse texto é sobre esperança e milagres.

Estamos falando de uma criança que já nasce com um decreto de morte autorizado pelo Estado, sofre uma perseguição do aparato militar da época na intenção de tirar a sua vida. Essa criança encontra proteção e refúgio em território africano. Um Jesus que foge do império e é criado na periferia.

A história de Cristo está muito mais próxima dos territórios negros do Brasil do que da realidade da Europa ou dos bairros nobres. Quando acionamos a negritude de Jesus, falamos que ele se identifica com as dores das mães que perderam seus filhos para a violência estatal, assim como Maria perdeu Jesus para o Império Romano.

A vinda de Jesus anunciada no livro de Isaías 9 vai afirmar que um “povo que caminhava em trevas viu uma grande luz; sobre os que viviam na terra da sombra da morte raiou uma luz”, e que essa luz quebrou a vara de castigo do opressor. O texto continua, afirmando “porque um menino nos nasceu”. A profecia de Isaías diz que o nascimento de Jesus significa essa luz que quebra as opressões.

Ano passado me deparei com uma notícia de mães que perderam mais de um filho, de maneira cruel e violenta, para a violência policial e racial no Brasil. O título da matéria afirmava o seguinte: “Não tem Natal”. Essa afirmação me atravessou de uma maneira visceral. A inexistência do Natal simboliza um mundo que não permite o nascimento do Jesus de Nazaré - mas talvez para o Jesus branco, salvador de almas, a realidade em que uma mãe perde seu filho para a violência seja tão distante que não interfira na sua chegada a este mundo.

Acreditar no Jesus negro de Nazaré, neste caso, não é somente um jargão bonito, desconstruído ou uma fidelidade geográfica. Pensando no menino que foi acolhido no Egito, considerar a negritude Jesus neste contexto é, antes de tudo, olhar para a sua história.

O Natal fala de um menino que chega condenado à morte, mas que é salvo por uma comunidade inteira comprometida com a sua vida. Jesus é salvo por gente que ama a vida. Maria em seu cântico fala que esperava uma criança que iria “encher de coisas boas os famintos, mas despedir de mãos vazias os ricos”.

O Natal só é possível quando o fim da morte é decretado. O Natal só existe diante do milagre do fim da fome. O Natal só será real quando crianças e jovens negros pararem de ser fuzilados, encarcerados, tratados como coisa pelas polícias mundo afora. O Natal só pode ser comemorado quando todas as crianças palestinas viverem em uma terra de paz, justiça e alegria.

A mensagem do Natal é sobre um Deus comunitário, criança, festeiro e justo, que olhou os sacrifícios em seu nome, que viu as mães que choram todos os dias pelos seus filhos desaparecidos misteriosamente depois de serem colocados dentro de um camburão da polícia.

O Natal não está acontecendo nas grandes igrejas, nos mega templos, com os grandes corais. Aquilo, segundo Hebreus 10, é só um “vislumbre das coisas boas”. O Natal acontece no abandono, nos lugares que não existem. Ele é a materialização do milagre, do messias esperado, do Cristo Ressurrecto.

O Natal é o nascimento de um mundo inteiro encarnado no menino Jesus. Um mundo em que jovens negros não são assassinados a cada 23 minutos.

Edição: Vinícius Sobreira