Nossas aldeias e territórios podem contribuir muito para um debate mais plural
“Vai usar o arco, como usava antigamente? Hoje não é mais aquele tempo. Hoje nós queremos estar no poder”. Lembrar de Mário Juruna dizendo isso é lembrar que o debate atual sobre a necessidade de ocupar os espaços não é tão recente assim. E é essa compreensão que fez com que “Aldear a Política” se tornasse uma expressão muito repetida dentro das discussões do movimento indígena por todo o país.
O TSE contabilizou que 241 candidaturas indígenas, espalhadas por todo o Brasil, conquistaram mandatos nas eleições de 2024. Em Pernambuco, constam como eleitos 25 indígenas, sendo o estado que lidera com o maior número de candidaturas indígenas eleitas nas disputas municipais.
O movimento indígena compreende que conseguiu eleger bem mais representantes. Cito isso a partir da realidade da minha cidade, Pesqueira, aqui no Agreste pernambucano. Embora na Justiça Eleitoral conste como indígenas eleitos quatro representantes (sendo o prefeito e três vereadores), na realidade há mais três indígenas que vão ocupar cadeiras na Câmara Municipal.
Destacar aqui essa “subnotificação” é exatamente para mostrar uma das responsabilidades desses eleitos: enfrentar a invisibilidade. Esses mandatos são, antes de tudo, ferramentas de resistência. E, para estar em um mandato atuando em defesa dos povos indígenas, é preciso se afirmar enquanto indígena, exatamente pela importância dessas vitórias para ocupar espaços de poder e trazer representatividade para instituições que têm um histórico de representantes e práticas coloniais.
Essa expressiva quantidade de vitórias eleitorais é fruto de muito tempo de construção. Talvez - depois de olhar para uma cidade como Marcação, no interior da Paraíba, e m que a prefeita e todos os vereadores eleitos são indígenas - talvez a gente ache que foi fácil. Depois de ver que Pesqueira tem sete indígenas eleitos e que houve um crescimento de representatividade em todo o país… pode parecer que é algo simples, mas não é.
O histórico em nosso país tem longos períodos sem representação. O primeiro representante indígena que ocupou uma cadeira no Congresso Nacional, na condição de deputado federal, foi Mário Juruna, eleito apenas no ano de 1982. E quando findou o mandato, em 1987, houve mais um grande hiato de indígenas eleitos para ocupar cadeiras no Congresso Nacional.
Em 2018, após 31 anos do mandato de Juruna, foi eleita a primeira mulher indígena deputada federal, Joênia Wapichana. Em 2022 ela não se reelegeu, mas a “bancada do cocar” ganhou outras duas representantes: Sonia Guajajara e Célia Xakriabá.
O crescimento no número de candidaturas ocorre exatamente como uma estratégia de resistência. A campanha promovida pela APIB, “Por um parlamento cada vez mais indígena”, vem desde 2017 discutindo e incentivando candidaturas. O fim do hiato de 31 anos sem representantes no Congresso já é resultado disso, assim como o aumento de indígenas nas câmaras municipais. O projeto de “aldear a política” tem ganhado força. Nossas aldeias e territórios podem contribuir muito para um debate mais plural.
Mas por que isso é necessário? Se olharmos para o Congresso Nacional, fica evidente como cresceu e ganhou influência a bancada que defende os interesses dos latifundiários, atuando como inimigos dos povos indígenas. Isso fica ainda mais explícito quando observamos a quantidade de Projetos de Lei que facilitam o uso de agrotóxicos, que vão contra a agricultura familiar, ou de projetos cujo principal objetivo é inviabilizar a demarcação dos territórios indígenas. Então ocupar esse espaço, mesmo que em quantidade menor, é para dar voz e atuar nesses ambientes.
Sabe qual é um dos principais questionamentos ao ocupar um espaço como esse? Não mudou muito da realidade que se via em 1982 e era relatada pelo primeiro indígena eleito para o Congresso Nacional: “quando eu cheguei aqui, muita gente falava... ‘imagina como Juruna vai entrar no plenário’, ‘o que um índio vai fazer no plenário?’. Como é que índio vai representar índio? O que eu quero saber é o que o branco representa aqui no Brasil?”.
O relato de Juruna mostra como ele foi, por várias vezes, folclorizado, associado a alguém incapaz de exercer a função, mesmo sempre se mostrando bastante assíduo, capacitado para exercer suas funções e combativo na sua atuação parlamentar.
Mesmo tanto tempo depois, essa segue sendo uma missão de cada indígena eleito: combater o preconceito com uma atuação responsável e qualificada. Porque, infelizmente, essa visão folclórica continua enraizada em nossos municípios. Cada mandato desse tem como responsabilidade combater o preconceito, porque em vários momentos esse mesmo preconceito vai questionar a necessidade e a competência de um mandato indígena.
Quem melhor do que nós para lutar contra as violências resultantes da lentidão ou até da falta de demarcação de um território? Para se posicionar contra o marco temporal? Para trazer o debate e as nossas responsabilidades diante da gritante crise climática? Para discutir e criticar como o Estado traz em sua estrutura a lógica de atuação colonial? Para defender a importância dos investimentos nas atividades do Plano Nacional de Gestão Territorial Indígena?
Se tratando de categorias profissionais, quem melhor para pautar a regulamentação dos trabalhadores e trabalhadoras de Saúde Indígena? Ou, trazendo para Pernambuco, seguir na luta pelo reconhecimento da categoria de professor indígena, que - em ambos os casos, saúde ou educação - atuam em realidades desafiadoras?
Eu sei que essas pautas parecem muito mais nacionais e que são competência de debate do Congresso ou do poder legislativo estadual. Então, como os mandatos nas câmaras municipais podem ajudar? A partir de cada mandato podemos utilizar o espaço para promover o debate público; educando e sensibilizando sobre os impactos de cada uma dessas ameaças na realidade local; utilizando a força que os mandatos conquistaram para pressionar os deputados a que temos acesso. Insisto: o mandato precisa ser ferramenta de resistência.
Talvez isolados esses mandatos tenham dificuldades, devido à forma como esses espaços funcionam. Mas e se eu olhasse para o exemplo de Xikão Xukuru? Se eu olhasse para os vários líderes que já se ancestralizaram e se dedicaram à nossa luta?! Vamos lutar juntos a partir de uma bancada indígena aqui de Pernambuco?
Quer saber mais sobre as pautas dos povos e a criação de uma bancada indígena? Vamos trocar ideias nessa coluna. Eu sou Guila, indígena Xukuru do Ororubá, um dos fundadores da Ororubá Filmes (coletivo de comunicação aqui da etnia), advogado, mestre em Antropologia Social, recentemente eleito vereador de Pesqueira (PE) e agora colunista do Brasil de Fato.
Edição: Vinícius Sobreira