A estrutura de financiamento do transporte público coletivo no Brasil está carregada de vícios
Em dezembro de 2024, refletimos sobre a questão social envolvida no fenômeno do “surfe” nos ônibus, bem como sobre a desconexão dos nossos ilustres deputados em relação à realidade das ruas da cidade — ou, mais precisamente, à dinâmica social dos ônibus.
A ideia era começar o ano “esperançando”, dando continuidade ao debate proposto na coluna anterior. O objetivo era refletir e aprender com exemplos emblemáticos de como reduzir desigualdades sociais por meio de políticas públicas atreladas a projetos de urbanização integradora. Na Colômbia, as cidades de Bogotá e Medellín se destacam como exemplos de políticas públicas eficazes, que articularam, de forma simultânea, três pilares fundamentais: urbanização, mobilidade e cidadania.
Mas começamos janeiro de 2025 com certo amargor, diante dos aumentos no preço das tarifas do transporte público por todos os lados, sem perspectivas de melhoria na prestação desse serviço essencial, considerado um direito social pela Constituição Federal desde 2015.
Após os reajustes, algumas tarifas do transporte público coletivo (TPC) em João Pessoa (PB) e Natal (RN) chegam a R$4,90. Em São Paulo (SP), o metrô subiu para R$5,20. Salvador (BA) para R$5,60 (cidade rica?). Já em Florianópolis (SC), a passagem sofreu um salto significativo, passando de R$6,00 para R$6,90 a depender da forma de pagamento. E a lista não para por aí. Só fico imaginando se o preço da gasolina aumentasse 90 centavos numa tacada só, o que seria?
No caso do Recife, como já noticiado por aqui, houve um aumento de 4,87%. Os antigos anéis A e B — cujo desenho das rotas no território da cidade permanece um mistério para muitos — passaram a custar R$4,30 (até 4 de janeiro o valor era de R$4,10). Outras linhas, pertencentes a outros anéis, que na verdade não são “círculos”, também tiveram reajustes distintos.
Como de costume em nossa coluna, deixamos aqui algumas perguntas para servir de base às nossas reflexões de início de ano:
- Em nome da transparência, existe alguma planilha disponível na internet com os custos detalhados, permitindo que todos compreendam de fato os motivos do aumento ou tudo se resume à adequação da inflação?
- Quais melhorias estão previstas para a prestação deste serviço essencial com o aumento da tarifa?
- Como é possível que o valor de uma passagem de transporte coletivo — cujo princípio é a divisão de custos entre diversos usuários — seja mais caro que 1 litro de gasolina, considerando uma viagem de ida e volta?
- Qual a porcentagem de usuários do transporte público coletivo (TPC) que utiliza o serviço sem pagar? Qual é a fonte de financiamento dessas pessoas?
- Quais os critérios utilizados para a distribuição do subsídio no TPC? Esses recursos poderiam ser mais bem aproveitados? Ou melhor, deveriam ser mais debatidos com a sociedade (afinal, é dinheiro público)?
- Como enfrentar o desafio do círculo vicioso do transporte público coletivo? (vamos explicar no parágrafo abaixo essa perniciosa herança do século 20).
A lógica atual do financiamento do TPC, na esmagadora maioria das cidades do Brasil, é baseada exclusivamente na remuneração por passageiros. Essa lógica estimula ‘indiretamente’ a superlotação. Paradoxalmente, essa dinâmica leva à deterioração do serviço, à perda de usuários e ao aumento de tarifas. Agora, com ainda menos passageiros, o ciclo se repete.
Essa lógica é claramente vantajosa para os empresários, mas desastrosa para os passageiros, que enfrentam baixa qualidade, pouco conforto e disponibilidade no serviço. Em muitos casos, com menos usuários e para a “manutenção” do serviço, linhas são eliminadas, frotas reduzidas e horários limitados. Este cenário lhe parece familiar?
Voltemos aos aumentos. Em Belo Horizonte (MG), o valor da tarifa saltou de R$5,25 para R$5,75. No entanto, circulou a informação de que o valor real deveria ser de R$9,40! Para evitar um ‘colapso’ no sistema, a diferença será custeada pela administração municipal, um mecanismo conhecido como “subsídio”.
Algo está muito errado e precisa ser debatido. A estrutura de financiamento do transporte público coletivo (TPC) no Brasil está carregada de vícios. Com a explosão de concorrentes — como o aumento no uso de carros particulares, motocicletas e serviços de aplicativos —, o sistema não consegue mais sustentar-se como no século 20. A pandemia catalisou esse fenômeno e expôs essas fragilidades. O setor privado parece perdido diante desse velho-novo desafio.
Dessa forma, entramos no cerne da verdadeira discussão: como financiar o TPC de forma sustentável? Devemos adotar subsídios públicos no TPC no modelo vigente ou repensar a lógica por trás deles? Ou fingir que nada está acontecendo e continuar com a mesma lógica fracassada dos modelos existentes?
Na Região Metropolitana do Recife (RMR), os subsídios destinados ao transporte público chegam a cerca de meio bilhão de reais por ano. Apesar desse alto investimento, o sistema é amplamente considerado ‘ruim’, conforme apontado pela governadora Raquel Lyra em entrevista ao G1 em dezembro.
Aliás, você já reparou que, muitas vezes, o termo “público” no “transporte público” soa um pouco contraditório? Isso porque, na prática, ele exige o pagamento dos próprios usuários na maioria dos casos. Um serviço realmente ‘público’ só seria efetivo se fosse implementado o que conhecemos hoje como tarifa zero (TZ), um modelo que ganhou força após a pandemia.
O site Tarifa Zero oferece, quase em tempo real, informações sobre as cidades do Brasil que implementaram totalmente essa política pública. Inicialmente, a TZ foi pensada na década de 1990, na cidade de São Paulo, para promover a inclusão de pessoas que estão à margem da sociedade, muitas vezes se tornando ‘imóveis’ devido à impossibilidade de pagar pela tarifa para acessar serviços ou atividades como uma entrevista de emprego, um cursinho preparatório ou mesmo um hospital. Atualmente, essa pode ser uma janela de oportunidade para revolucionar o financiamento, a operação e a prestação de um serviço essencial.
Por fim, é evidente que quanto mais pessoas utilizarem o transporte público coletivo (TPC), menos indivíduos estarão nas ruas disputando espaço no já sobrecarregado ‘viário’. Como consequência, o trânsito e os congestionamentos diminuem. Assim, mesmo aqueles que não são usuários regulares do TPC se beneficiam com a melhoria na qualidade do serviço.
Adicionalmente, destacamos os ganhos para o meio ambiente, com a redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE), assim como para a saúde pública, devido à diminuição dos acidentes, sinistros e custos com indenizações. Em resumo, todos ganham com um TPC de qualidade: os cidadãos, a cidade e o meio ambiente. Logo, o aumento de tarifa não pode se resumir somente a uma possível “adequação à inflação”. Isso é jogar fogo na fogueira.
Entramos em um paradoxo. Deixo aqui a provocação final. Por um lado, os empresários estão desesperados por subsídios diante da queda na demanda e na redução de suas receitas. Trata-se de uma “bolsa empresário” ou “subsídio” para empresários, já que em nenhum momento se questiona ou se planeja melhorias na estrutura do TPC.
Por outro, com passagens cada vez mais caras, comendo uma parcela significativa da renda da população, cresce a necessidade de mitigar ao máximo esses “custos” (ou seriam investimentos?). O tema está aberto ao debate: em que termos os subsídios devem ser implantados no transporte público do Brasil?
O ano de 2025 começa de forma preocupante. Verdade seja dita, devemos estar atentos ao ano de 2026, que promete fortes emoções para quem está do outro lado da catraca — pessoas que provavelmente não utilizam o transporte público coletivo, não entendem nada do assunto, tampouco sobre a cidade ou desenvolvimento social. Fica o alerta para que você, caro eleitor, não se esqueça desse mês!
Como bem disse o grande pesquisador Eduardo Vasconcellos, o TPC não pode ser tratado como uma ‘pastelaria’ (com todo o respeito aos deliciosos pasteis). O transporte público deve ser tratado com a seriedade e a complexidade que ele realmente merece. E, no século 21, exige mudanças profundas.
É urgente uma revolução no planejamento do desenho da rede, na operação, no financiamento, na governança e, claro, na tecnologia. Tudo isso deve ser integrado e abordado simultaneamente, em diversos espaços e sistemas, com a participação popular.
Edição: Vinícius Sobreira