Ao longo de 12 anos foram mais de 900 mil recifenses participando do Orçamento Participativo
A defesa da democracia tem sido um dos pilares do discurso do campo progressista nos últimos anos. Na verdade é um debate antigo, mas desde o golpe contra Dilma e a ascensão da extrema direita tem tomado lugar central nos programas e falas das principais lideranças populares do país. Porém, os progressistas em geral vêm se contentando cada vez mais com uma ideia mínima de “democracia”, sem pôr no centro do debate valores fundamentais, como a igualdade e a participação popular.
No Recife, onde a população historicamente teve que resistir à exploração e exclusão total, esse debate foi feito ainda no século 20 por importantes figuras da nossa história, mas foi no início do século 21 que ele se materializou de forma avançada, a partir de lideranças advindas do seio das próprias classes trabalhadoras, com a chegada do PT à prefeitura da capital.
Foi a partir daí que o povo da cidade pôde, pela primeira vez, escrever ele mesmo sua história, a história dos Silva, dos Santos, dos alagados e marés. Foi então que a máxima de Paulo Freire, das pessoas que se apropriam coletivamente da própria trajetória e tornam-se sujeitos no mundo, pôde ser em alguma medida experimentada pelos moradores da periferia do Recife.
Assim, entre 2001 e 2012, a participação popular passou a ser um dos principais instrumentos de democratização da cidade, na medida em que não só garantia uma cidadania ativa, mas também ajudava a melhor distribuir o orçamento para regiões mais carentes.
O motor propulsor dessa força democrática foi o famoso - e agora, infelizmente, “saudoso” - Orçamento Participativo. Remodelado nas gestões do PT, o “OP” organizava plenárias nos bairros, onde a população discutia e decidia de forma direta como deveria ser gasto parte do orçamento.
Havia, como gostam de definir os estudiosos do tema, um “ciclo do OP”, que começava na construção da metodologia do programa junto às comunidades, avançava para a etapa das assembleias populares regionais, a deliberação sobre obras e prioridades, a eleição de delegados e chegava até a execução e monitoramento das obras.
Tudo isso era construído nos bairros, com a participação direta dos moradores, muitos dos quais eram ouvidos e instados a agir coletivamente pela primeira vez, libertando-se das amarras de relações clientelistas com agentes políticos.
Somadas às participações em todas as modalidades de plenárias do OP e das pessoas que usaram as ferramentas digitais do programa no último governo petista na cidade, foram mais de 900 mil pessoas participando do Orçamento Participativo no período.
Daí decorreram milhares de obras nas periferias e centenas de milhões de reais investidos em saneamento de bairros inteiros, caso do bairro da Mangueira, ou nas emblemáticas obras de contenção de deslizamento em áreas de morro, que fizeram o Recife praticamente não ter mortes durante o inverno na periferia, entre tantos outros exemplos.
O OP proporcionou, na prática, a alocação de importantes recursos em áreas periféricas da cidade, democratizando não só a participação política, mas o acesso das populações de diferentes territórios ao orçamento municipal. Aliás, um ponto importante é que o valor a ser destinado a cada região levava em conta a carência do IDH (Indice de Desenvolvimento Humano). Havia explícito fortalecimento da relação entre participação e distribuição de recursos.
Sempre que há avanço econômico separado do controle social graves distorções podem ocorrer. A chegada da Refinaria Abreu e Lima (ao sul do Recife) e da fábrica da Jeep (ao norte), por exemplo, tende a isolar da rota mais atrativa da cidade a zona Oeste, empobrecendo-a.
Mecanismos como o OP são muito importantes para fazer chegar ao conjunto da cidade e ao seu orçamento a voz e as demandas desses territórios. Além disso, é apontado por ampla literatura da ciência política o efeito benéfico da participação social sobre a qualidade das decisões de políticas públicas, sobretudo em âmbito municipal.
A partir de 2013, porém, com a chegada do PSB à Prefeitura do Recife, o Orçamento Participativo foi sendo desconstruído. Ainda naquele ano a nova gestão anunciou um programa que viria substituir o OP, denominado “Recife Participa”. Esse programa buscou repetir o modelo de plenárias regionais, eleição de delegados e outros aspectos semelhantes ao OP, mas promovendo mudanças - como tornar a participação meramente consultiva, sem poder de decisão - que na prática anulam o poder transformador da experiência. Além disso, os temas eram pré-definidos e as comunidades tinham pouca ingerência sobre eventuais mudanças de rota em relação ao que seria discutido.
Vários filtros foram sendo criados, boa parte deles bem vistos por vereadores e outros agentes políticos atuantes nas regiões, desejosos por retomar maior poder de influência em certos territórios. Cambaleante, sem jamais ter conseguido formatar solidamente um modelo próprio e verdadeiramente participativo, o “Recife Participa” foi ficando apagado até ser substituído, a partir de João Campos, pelo “Todos por Recife”.
Com o “Todos por Recife”, a transição iniciada no “Recife Participa” se completa e a participação popular aos moldes do Orçamento Participativo acaba definitivamente na cidade. O novo programa limita a participação a duas únicas modalidades: uma consulta individual e solitária, por meio da internet, e a participação em votações esporádicas em totens eletrônicos espalhados ocasionalmente pela prefeitura, com temas predefinidos, que facilitariam a escolha das “entregas” certas a serem feitas à população. Ambas são apenas consultivas e excluem a participação coletiva e organizada das camadas populares.
Trata-se de um pálido método de participação social, mais próximo de uma visão individualista, tecnocrática e mercadológica que de um projeto verdadeiramente democrático de cidade.
A própria ideia de “entrega”, muito enfatizada pelo atual prefeito para falar de suas realizações, é uma expressão completamente emprestada do mercado, como se o poder público fosse um mero prestador de serviço a “clientes” dispersos e passivos. Perde-se a dimensão coletiva e democrática sem a qual a cidadania não existe.
Para esse tipo de visão basta que essas consultas se somem a um prefeito que circula e filma suas vistorias nas comunidades, ouvindo, aqui e ali, pedidos soltos de moradores, garantindo-lhes retorno. Isso, convertido em método participativo de gestão, é para lá de antigo, mesmo sendo mediado pelas modernas redes sociais.
Diferente, historicamente inovador e democrático é fortalecer, como método, a participação direta, coletiva, não tutelada e protagonista da população, sobretudo a mais pobre. Novidade seria a superação da relação de tutela a partir da qual as famílias com sobrenomes tradicionais sempre organizaram, de cima para baixo, suas relações com as classes trabalhadoras, percebidas como incapazes ou acusadas de imperícia.
Na última década, o Recife abriu mão do Orçamento Participativo, programa que foi a culminância de um processo de fortalecimento dos movimentos sociais, da emergência de lideranças de origem de classe e de intelectuais e quadros técnicos com profunda identificação com o projeto popular.
Ocupou seu lugar um modelo de consultas desarticuladas, culminância, por sua vez, de um outro processo, o de fortalecimento dos grupos políticos mais influentes da cidade, mediados por lideranças sem origem ou lastro popular e operacionalizado por uma geração de quadros estritamente técnicos, formados na burocracia contábil do Estado e na cartilha liberal da lógica empresarial.
A desarticulação do Orçamento Participativo talvez não seja uma mera decisão sobre o fim de um programa, mas a representação máxima de uma profunda mudança de projeto de cidade. Mudança, aliás, sentida nas camadas mais pobres, já que os índices de miséria e pobreza aumentaram no Recife na última década, mas isso é assunto para outro momento.
Espanta e constrange o fato de debates como esse sequer serem colocados na arena pública. Movimentos sociais, partidos, intelectuais e organizações não têm cumprido o papel de fazer um mínimo contraponto, um mínimo comentário crítico, e os debates em torno da cidade, com raríssimas exceções, têm se mantido silenciados.
Num tempo de tanta “defesa da democracia” cabe recuperarmos, em nossa cidade, os sentidos desse movimento e voltarmos a afirmar a importância da participação popular, ampliada e com novas ferramentas, para um projeto verdadeiramente democrático de igualdade e universalização da cidadania.
Em nome de um ambiente democrático, façamos, ao menos, o debate.
Edição: Vinícius Sobreira