Parece que a estratégia de difundir mentiras é imbatível. Para a extrema-direita é fácil. Mas e nós?
Se fizermos uma breve análise, em um contexto de disputas de narrativas, o cenário não é positivo. Em meio a tanta fake news, crise sobre “taxação” de Pix, troca de ministro na Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal, o sentimento é de que a estratégia de difundir mentiras é imbatível, que é impossível combater a desinformação. Sabe qual é o meu maior medo? É que isso faça com que os movimentos sociais se dediquem menos a essa permanente disputa de narrativas.
O fato é que as redes sociais se consolidaram como ferramentas poderosas de mobilização. Essa comunicação digital tem proporcionado um novo espaço para o fortalecimento de nossas causas, permitindo uma conexão direta com o público e facilitando a disseminação de nossas pautas e lutas. Não consigo escrever sobre isso e deixar de citar Ivan Moraes (também é colunista aqui no BdF), dizendo: “eu não sei qual é a sua primeira pauta de luta, mas a sua segunda pauta é a comunicação”.
Ver os reacionários pautarem as narrativas porque estão dominando as ferramentas de comunicação, espalhando desinformação, desorientando a população, é muito preocupante porque isso tem minado a confiança em fontes sérias de informação. Além de que as “medidas” tomadas pelas redes sociais não apenas não resolvem o problema, como muitas vezes pioram. Na prática, os algoritmos querem prender você ali na rede social - e o que está prendendo é a polêmica, a opinião irresponsável.
Para quem quer espalhar mentiras, criar polêmicas é fácil. Mas e para nós? Para quem tem responsabilidade e compromisso com as lutas sociais, acreditando em mudanças por meio da luta, é preciso saber que nosso trabalho é sempre mais difícil, por competir nesse cenário em que a desinformação e o conteúdo apelativo são ferramentas políticas eficazes e constantemente utilizadas por nossos adversários - até porque eles se apoiam no senso comum.
Quando Karl Marx tenta explicar que as ideias dominantes em uma sociedade são as das classes dominantes, é exatamente para mostrar que o senso comum atende aos interesses dos dominantes. Eu posso dar um exemplo que reflete a realidade de tantos outros: o caso do Povo Xukuru do Ororubá.
Desde a chegada da colonização, a lógica é de apagamento dessa identidade. Com o passar do tempo, mesmo com a resistência do Povo Xukuru, o fato de se reorganizar e lutar pelo território fez com que ganhasse força os questionamentos preconceituosos dizendo que “aqui nem existe índio”, “índio é quem anda nu”, “eles são ladrões de terra”. Sabe quem mais fazia questão de que esse discurso, apoiado no senso comum, ganhasse a cidade? Os latifundiários que não tinham documentação da terra que usavam, dentro do Território Xukuru.
Estão entendendo a incoerência? Estavam se apoiando na imagem do indígena folclórico para contestar a identidade de um povo que indiscutivelmente resiste aqui desde antes de existir a cidade de Pesqueira. Após questionar a identidade, questionam então a legitimidade de pleitear a demarcação e chamam o Povo Xukuru de “ladrão de terra”, mesmo sem que eles tivessem o documento das terras que ocupavam. Esse é um exemplo perfeito de quem se apoia no senso comum para criar uma aparência de moralidade, mesmo sem ter nenhuma legitimidade.
Eu lembro muito de uma “matéria” feita aqui durante um período de retomada, onde o povo estava ocupando um espaço no limite do Território Xukuru. O repórter veio, filmou o Cacique Marcos, que falou durante um bom tempo da pauta de luta do Povo Xukuru, do resgate do território... e a manchete que saiu na matéria foi: “um índio de calça jeans, celular e aparelho nos dentes”. Não trouxeram nada da luta. É aí que o Povo Xukuru entende a gritante necessidade de criar as próprias iniciativas de comunicação.
Além do histórico do uso da oralidade para se manter unido, em 2006 se iniciou a rádio Resistência Xukuru FM, que ficava sediada lá na Aldeia Vila de Cimbres, para politizar, levar a informação, fazer enfrentamento, incidir na política. Tinha um raio pequeno de alcance, utilizava um transmissor de baixa potência. O interesse era chegar até os receptores das aldeias, era para se comunicar entre a gente, até para que os discursos preconceituosos não fossem os únicos. Infelizmente a rádio teve que ter suas atividades interrompidas, diante do monopólio das concessões de radiodifusão.
Não coincidentemente, no mesmo lugar, surgiu uma iniciativa de teatro, inicialmente conduzida pela professora de história, Valdenice. O texto adaptado conta a história do Povo Xukuru, da colonização, passando pelo período da Constituinte, até a demarcação do Território Xukuru. O teatro tem narrativa com base em documentos oficiais. Como poderiam dizer que aqui não tinha “índio”? O Teatro Mandaru se tornou uma iniciativa que ia além da escola e representou o Povo Xukuru, contando nossa história em vários lugares.
Em 2008 se inicia a oficina de audiovisual Xukuru do Ororubá. A gente queria mostrar a história a partir do nosso ponto de vista. O resultado dessa oficina é o surgimento da Ororubá Filmes. Aqui, tudo é muito coletivo: a forma de dividir as responsabilidades, de pensar a produção. O conteúdo dos vídeos tinha inicialmente o objetivo do resgate histórico, mas logo entendemos a necessidade de fazer também essa crítica sobre como a imagem do indígena transmitida é muito mais na perspectiva de folclorizar.
Se o discurso de que “aqui não tinha índio” era exatamente baseado no preconceito de que indígenas devem ser “atrasados”, desconstruir essa visão era necessário, já que estávamos usando tudo de tecnologia que estava ao nosso alcance, mas como instrumento coletivo de luta.
Isso fica ainda mais óbvio quando o coletivo toma a decisão de transmitir a Assembleia Xukuru, para afirmar que nós, indígenas, lá na Aldeia Pedra D’água, sem uma grande estrutura de comunicação, estávamos utilizando aquela ferramenta. Estávamos subvertendo a forma como fazíamos comunicação. Realizar a transmissão ao vivo era fortalecer exatamente o nosso lema: “utilizar o que tem de moderno para fortalecer o que tem de ancestral”.
Somada a várias outras iniciativas, a Ororubá Filmes contribuiu para mudar a forma como a população de Pesqueira enxergava o Povo Xukuru, tem ajudado a desconstruir preconceitos e a dar visibilidade às nossas pautas de luta para além das fronteiras dessa cidade.
A organização social do Povo Xukuru sempre nos incentivou porque acredita nessa estratégia. Então fomos ouvindo as lideranças, buscando nosso protagonismo, nos posicionando, combatendo os estereótipos. Hoje muita coisa mudou, mas já imaginou se a gente tivesse parado? Então vamos continuar na luta, porque aqui seguimos, à nossa maneira, mandando nosso ‘sinal de fumaça’.
Vou até deixar um convite para a 1ª Mostra de Cinema Indígena do Nordeste - “Nossa Comunicação é Ancestral”, que vai acontecer nos dias 28, 29 e 30 de março, no Espaço Mandaru (Aldeia Pedra D’água, Serra do Ororubá, Pesqueira, PE). Se quiser mais informações, entre nas redes sociais da Ororubá Filmes. Vamos ver vários documentários produzidos por indígenas, ter oficinas, além de continuar debatendo muito sobre comunicação. Bora?
Edição: Vinícius Sobreira