Pernambuco

Coluna

Quem cuidará dele na minha ausência?

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Alexsandra revela que no patriarcado constrói o retrato da ‘mãe guerreira’, aquela que aguenta tudo, sendo o desgaste sua fraqueza e não a revelação da injustiça social - Arquivo pessoal de Alexandra
Se Alexsandra for tudo, o Estado, os pais dos seus filhos, a escola, não precisem ser nada, não é?!

A convivência da escuta, com Alexandra Silva

Não conheço e nem alcanço “todo mundo”, mas acho a escrita um excelente registro de denúncia e de história. Irei compartilhar à convivência da escuta através das histórias de pessoas com deficiência e também de mulheres cuidadoras de pessoas com deficiência. Diferente das pesquisas, aqui elas serão apontadas por nomes, raça, sorriso, desabafo e classe, sem nenhum tipo de análise, estarão só elas e o que tiver de ser dito.

Conheçam Alexsandra Silva, residente na zona rural de Saloá, mãe de Augusto e Anthony, jovens com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Alexsandra é uma mulher negra, tem cabelos cacheados e curtos, olhos brilhantes que ficam pequenos quando sorri. Fácil de conversar, usa saia longa, bermuda, blusa de manga e tênis coloridos. Sorriso no rosto, destemida, cheia de críticas, pequena de tamanho, mas grande de presença e percepção do seu lugar no mundo.

Segundo Alexsandra, Antonhy “é top” e aumenta todas as possibilidades e perspectivas que ela já teve. Um cara com a cabeça diferente que tem expandido os horizontes da escola. 

Alexsandra conversou comigo e com uma das estudantes da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco, que enxergava na escuta uma possibilidade de quebra estrutural. Na ocasião, perguntamos sobre a história de Sandra, o que ela quisesse falar. Ela começa pela paixão, do amor que sentia pelo antigo parceiro, pela tranquilidade da reciprocidade que entendeu sentir durante a sua gestação, para logo depois ter seus sentimentos marcados pelo rompimento da rejeição.

“Minha primeira gravidez foi tranquila, porque eu estava muito, muito, muito apaixonada. A minha decepção veio depois, né?! Quando o meu filho nasceu, o pai dele disse que não queria ‘uma criança com defeito de fábrica’. Dessa maneira... assim. Ele disse que não estava preparado para ter uma criança ‘com defeito’,  me deixou. Até hoje ele paga pensão, pela Justiça, mas ele não liga. Mora em outro estado. Não fala com ele (filho)”.

“Passei 10 anos sozinha. Aí encontrei o pai de Anthony (seu segundo filho). Eu estava depressiva, sozinha, estava sendo usuária de drogas. Isso afetou muito o meu filho. Passei a gestação usando drogas. Foram 2 anos com a cabeça bagunçada. Quando eu tive ele, eu renasci quando meu filho nasceu. Quando eu olhei para a cara dele eu entendi que era uma nova oportunidade para fazer as coisas direito. Por isso eu estou me curando todos os dias, todos os dias um pouquinho. Eu já estou há 15 anos sem usar nada. Não bebo, não fumo, faço acompanhamento psicológico, para não ter nenhuma recaída”.

Alexsandra, ao falar dos seus medos, traz a pergunta tão ecoada pela maioria das cuidadoras de filhos com deficiência: quem irá cuidar do meu filho(a) na minha ausência?

“Eu já fiquei doente, tive câncer. Aí eu conheci um outro lado: ter que deixar meus filhos em casa, deixar eles com minha mãe. Durante esse tempo, fiquei sozinha 70 dias no hospital, porque minha mãe tinha que ficar com eles e eu não tinha ninguém para ficar comigo. Então hoje um dos meus maiores medos é que eu tenha outro problema de saúde e precise me ausentar, porque minha mãe tem 66 anos e não vai estar aqui para sempre. Eu sempre comento isso…”

“Quando o meu filho era pequeno, por duas ou três vezes eu fiz exame ginecológico com ele dentro do consultório. Eu não tinha com quem deixar ele. Recentemente eu tive um problema no braço, no ombro para ser exata, e quando eu fui fazer o exame ele foi comigo. O cara disse que ele não podia entrar, por causa do raio-X panorâmico. Ele ficou aos berros do lado de fora, chorando porque queria entrar comigo. O cara dizia: ‘não se mexa, não se mexa’. Mas eu ficava tentando olhar para ele do vidrinho lá, porque ele estava apavorado”.

Buscando encontrar um lugar para falar da sua exaustão, do seu cansaço e sobrecarga, Alexsandra, objetivamente, revela o familismo que no patriarcado constrói o retrato da ‘mãe guerreira’, aquela que aguenta tudo, sendo o desgaste sua fraqueza e não a revelação da injustiça social. Se Alexsandra for tudo, talvez o Estado, os pais dos seus filhos, a escola, não tenham que ser nada, né verdade? 

“Quando você vê uma mãe dizendo que está cansada, 90% das pessoas dizem: você é mãe, mãe não se cansa. As cuidadoras morrem de vergonha de dizer que queriam um tempo para descansar, porque a gente como cuidadora diz que quer descansar, e respondem: ‘mãe é 24h’. Se eu tivesse tempo para fazer o que eu quisesse, eu iria passar uma semana dormindo, dormindo a hora que eu quisesse, quando eu quisesse”.

“Por muitas vezes pensei que se eu tirasse minha vida, as coisas melhorariam. Uma coisa que eu acho impressionante é que a gente não tem paz. Já me disseram: ‘mulher, por que você tem dois filhos assim deficientes?’. Eu acho que isso é uma forma de meio que incitar a responsabilidade disso para gente e essa é a sobrecarga maior”. 

“Eu tenho algumas amigas, mas nosso tempo de conversa é curto. Demoro para responder no celular porque uma hora um está no joguinho, outra hora tenho que dar banho neles, outra hora tenho que colocar a comida no fogo… É como se não existisse tempo. E quando tenho tempo, me sinto culpada. Esses dias fui no psicólogo e perguntei: porque me sinto culpada quando arrumo tempo para mim? Eu me dou ao ‘luxo’ de vir ao psicólogo e me sinto mal”.

Com clareza, ela fala sobre a necessidade de agência dos seus filhos, rompendo a ótica comumente capacitista que recai nesses jovens como culpados da exaustão daquela mulher, tal como fardos. Alexsandra, na verdade, aponta para o lado do combate à injustiça, na cobrança do Estado, da transformação das dinâmicas que oprimem o corpo desta mãe e destes filhos, da ética do cuidado, do compartilhamento e da responsabilização coletiva.

Ela nos conduz a prestar atenção para as subjetividades de Anthony e Augusto, no poder de agência de cada um, bem como no direito de descanso para si. Por fim, Sandra aponta a escuta como poderoso caminho para desvelar as opressões do mundo e como arma para os que calam suas histórias.

“O maior desafio é esse, o desafio social. É fazer com que as pessoas enxerguem que a pessoa com deficiência não é uma pessoa morta. Ela faz parte da sociedade e não é um peso morto”.

“O que você está fazendo hoje, que é me ouvir, evitaria muita coisa. Isso solucionaria muita coisa. O índice de depressão do cuidador é enorme. Cuidador não vive. Tem o peso de ser a pessoa perfeita e que ajuda. Mas e a parte governamental? Precisamos de apoio, para a gente ser ouvida, para a gente deixar eles aqui bem e relaxar. Inclusive para eles terem o tempo deles, sem nós”. 

Edição: Vinícius Sobreira