Mulheres do Sul Global são as mais acusadas de terem um corpo ambíguo para a categoria feminina
Por Barbara Gomes Pires*
Dialogando com as últimas duas publicações da coluna Esportes Rebeldes, mantenho a reflexão dentro do mundo do futebol. Se o futebol é resistência e trabalho, ele também é exemplo das desigualdades de gênero e das ansiedades sexuais que permeiam as discussões sobre o controle do corpo feminino no alto rendimento. No futebol feminino, os desafios fora do campo de jogo são inúmeros, desde pagamento equitativo em premiações e contratos, passando por denúncias de assédio que surgem no ambiente de gestão e treinamento, e até mesmo nas comemorações de uma premiação de Copa do Mundo.
O recente caso envolvendo uma jogadora do Barcelona, acusada de assédio durante uma partida da Liga Feminina da Espanha, traz à tona questões que complexificam os debates sobre poder, gênero e ética no futebol feminino. Com o aumento da visibilidade da modalidade, até mesmo uma jogadora de um dos maiores clubes do mundo reflete as desigualdades que estruturam o esporte e sustentam a gestão do corpo feminino em nível internacional.
Durante a 18ª rodada da LaLiga feminina, em uma disputa de bola, a zagueira Mapi León do Barcelona toca as partes íntimas de Daniela Caracas, do Espanyol, além de questioná-la de forma ofensiva sobre ser mulher. Esse episódio retoma, na forma de um assédio entre jogadoras, a abordagem corriqueira que circunda ainda hoje os testes sexuais das entidades esportivas. Uma mira que se volta principalmente com mulheres que não se conformam aos padrões hegemônicos de feminilidade. A examinação do toque exercido por Léon com o questionamento humilhante “¿Tienes picha?” é parte de um encadeamento antigo de suspeição do corpo feminino.
Além de ser uma imigrante da Colômbia, atuando no futebol espanhol desde 2020, Daniela Caracas é uma mulher negra latino-americana. Historicamente, mulheres do Sul Global são as mais acusadas e investigadas de terem um corpo ambíguo para a categoria feminina no esporte. Sob o pretexto da proteção, mulheres racializadas da América Latina foram discriminadas publicamente a ponto de passarem por cirurgias irreversíveis para competir, como ilustra a história de Edinanci Silva, ex-judoca brasileira que sofreu com testagens sexuais antes de participar dos Jogos Olímpicos de 1996, em Atlanta, nos Estados Unidos.
Daniela, que optou por não reagir nem denunciar imediatamente para evitar sanções disciplinares, ressalta a vulnerabilidade dessa posição de se erguer contra a vigilância e invasão de seu corpo. Nesse caso de assédio durante um jogo, nota-se um dilema que junta a necessidade de equilibrar a defesa de sua integridade física e mental com as angústias dessa violação pública e os receios de possíveis repercussões profissionais.
Uma preocupação que se aprofunda para Caracas quando necessita inserir nesse cálculo da denúncia os medos em torno do racismo estrutural, da xenofobia espanhola e da falta de suporte psicológico e jurídico que é costumeira das gestões esportivas no futebol feminino. Como vimos com Vinicius Jr. e sua luta contra os xingamentos e as práticas racistas que permeiam a LaLiga masculina, o esforço mental, jurídico e social é muito significativo para buscar uma resolução – ainda que limitada e incipiente – à violência que está entranhada no mundo esportivo.
Em geral, a história do esporte está repleta de exemplos de como o controle e a regulamentação dos corpos femininos foram utilizados como ferramentas de poder. Passamos por algumas dessas histórias na coluna, como as de Helen Stephens, Stella Walsh e Heinrich Ratjen, que refletem esse desejo de controlar, rebaixar e tutelar mulheres. Mesmo atualmente, a questão do gênero e da sexualidade se materializa no esporte como um campo de batalha, como demonstra Donald Trump assinando um decreto que impede que atletas trans participem em esportes femininos no país. A suspeita sobre a feminilidade das atletas, os testes de verificação de sexo e a pressão por conformidade a padrões de gênero tradicionais são exemplos de como o esporte foi (e ainda é) utilizado para reforçar normas sociais e culturais.
Logo, esse assédio não pode ser visto como um caso isolado. Ele reflete uma realidade mais ampla de violência contra as mulheres e a diversidade no esporte. Aliada a essa ansiedade sexual, o assédio de Mapi em Daniela revela também os acionamentos sociais e subjetivos que hierarquizam valores para um pertencimento na feminilidade branca e ocidental. Os corpos e as performances são lidos e reconhecidos na teia de sociabilidade que nos conforma, evidenciando desigualdades de sexo, gênero, raça e território. O futebol feminino, que luta diariamente por respeito e igualdade, vê-se mais uma vez diante de um desafio político que nos afeta a todos e vai muito além das quatro linhas.
* Barbara Gomes Pires é antropóloga, atualmente pesquisadora de pós-doutorado em Antropologia Social, no Museu Nacional (UFRJ). Estuda regulações esportivas para a categoria feminina. Atuou em duas consultorias para a ONU Mulheres Brasil, utilizando o esporte como motor de transformação social e promoção da igualdade de gênero.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Nathallia Fonseca
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