Hoje, dois encontros me trouxeram ao que os Estados Unidos se transformaram após a posse de Donald Trump, transcorridos pouco mais de vinte dias.
O primeiro com a faxineira brasileira que atende meus vizinhos há longos anos. Fui me apresentar a ela com um aperto de mãos. Ela recuou por uma fração de segundos, suficientes para eu saber que não está acostumada a um tratamento igual ou respeitoso na terra do Tio Sam.
Mas aos poucos relaxa, estamos na rua e o sol da Florida aquece no que são os melhores dias do ano. Vai contando a vida. É de Minas. Mora aqui há mais de 18 anos. Tem cidadania e expressa com orgulho os detalhes de uma vida bem vivida. Mas me diz que vai voltar ao Brasil por um mês ou mais. Seu marido não tem papéis e foi barrado ao reingressar. Ela vai ao Brasil fazer o visto no consulado como conta apreensiva.
Eu pergunto mais e digo que se ela precisar de algo, tenho contatos com entidades de direitos humanos aqui nos EUA. Ela então se abre e me fala das amigas que são ilegais e estao em pânico. Presas com seus filhos em casa a espera da ICE (policia de imigração). Correm nas listas de brasileiros indocumentados todos os procedimentos do que fazer e do que não fazer. O maior medo é o de as amigas serem deportadas e separadas dos filhos americanos para sempre. As pessoas não conseguem mais dormir, muitos antecipam a trágedia e juntam suas coisas em um retorno sem precedentes da comunidade brasileira rumo ao Brasil.
Ela fala que sabia que Trump não era fácil, mas votar ‘naquela mulher’ era impensável. Diz que Kamala defendia o aborto e estava envolvida com tráfico de drogas... Imediatamente reconheço as narrativas de desinformacao que tanto pesquisei nas listas pre campanha dos brasileiros da Flórida.
Kamala era comunista resumiu, ante meu olhar incrédulo. Digo que é impossivel, mas o que mais me apavora é a narrativa tão bem constuída que o mundo masculino faz das candidatas ao redor do mundo. São loucas, são más, são corruptas. De Dilma a Kamala a mesma industria de desinformacao é eficaz para perpetuar o mundo masculino da política.
O segundo encontro se deu por zoom com quem considero um dos grandes professores de direito ambiental dos Estados Unidos. Estou editando seu livro para o portugues. São cases sobre litigância global e o papel inovador do judiciário na crise climática. A conversa segue leve até que o tom sombrio acompanha o comentario sobre o desmonte ambiental que Trump já conseguiu implementar nos primeiros dias.
O projeto 2025 é algo aterrador e uma máquina aperfeiçoada de moer democracias, como vimos antes na Polonia e Hungria. O Estado morre por dentro. Ele de repente me pergunta se eu já havia visto I Am Still Here (Ainda Estou Aqui), eu digo que sim. Ambos concordamos na beleza do filme e interpretações. Mas algo mais se passa, muito sutilmente em sua fala, quando ele me confessa que jamais pensou que aquele filme pudesse ser uma realidade como hoje de fato é nos Estado Unidos. Que ele jamais pensou em viver um ditadura, como os fatos fazem crer.
Neste momento eu lembrei de meu bisavô, um alemão integrante do exército na primeira grande guerra, um apaixonado por livros. Amava a poesia de Georg Trakl e Rilke. Decidiu sair de Hamburgo com toda familia, suas irmãs viúvas, quando viu os primeiros livros serem queimados. Qual o momento em que se percebe estar em uma democracia iliberal como gostam de eufemizar os professores de ciência política dos EUA? Como percebemos que estamos já submersos em uma ditadura?
Conforme nos relata o historiador Charles L. Mee Jr. (A História da Constituição Americana: O Gênio do Povo), “duzentos anos atrás, em maio de 1787, várias dezenas de delegados – todos homens, todos brancos, todos membros bem-posicionados do establishment político americano, todos proprietários de terras – incluindo proprietários de escravos, grandes fazendeiros, empresários, advogados, banqueiros e comerciantes – reuniram-se na State House, na Filadélfia”.
"E da forma mais surpeendente e inesperada possível, eles escolheram a democracia como a melhor forma de seguir com a jovem nação. Somente uma democracia, mesmo que elitista, poderia moldar constitucionalmente aqueles ideais iluministas. Como chegamos até a quebra institucional destes primeiros vinte dias, que fere de morte a democracia norte americana, é o que todos se perguntam."
Eunice Paiva não somente fez reviver na mente dos brasileiros a história de crimes brutais, retirada de direitos e dor que toda ditadura traz. Ela ensina aos norte americanos que a ditadura está logo ali na esquina. Na fala do oligarca Musk que pretende retirar promotores e juízes porque estão contrariando Trump. Nos 16 mil livros já proibidos. No ICE que espreita as mães que vieram trabalhar e que mal dormem a noite. Nos professores que denunciam seus alunos para a expulsão. E na barbárie que se apossou de todos os níveis civilizacionais desta nação, um pais que Alexis de Tocqueville uma vez descreveu como uma alegre e viva democracia.
Todos os indocumentados estão em suas casas com as cortinas fechadas, como Eunice Paiva vivenciou. Um medo que nunca ousou se apossar dos norte americanos, hoje ronda a todos.
*Luciana Bauer é fundadora do Coletivo Climático JUSCLIMA. Professora de Direitos Humanos e Direitos ambientais e climáticos.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho
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