Artigo

O que o cinema pode fazer por um país?

Tive muita vontade de ver a ditadura nos olhos de um trabalhador, por exemplo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Um filme é um discurso, uma mobilização que a ficção  permite fabricar - Divulgação/Ainda Estou Aqui

A indicação de Ainda Estou Aqui e da atriz Fernanda Torres ao Oscar levanta o debate político desde o filme em si, como também pela estratégia política da campanha. Como trabalhadora do cinema e mulher negra, eu pergunto: que Brasil levaremos ao Oscar?  

Quando vi Rubens Paiva dizer numa entrevista que "foi preciso o filme existir para o Estado brasileiro pudesse reconhecer a autoria da morte do meu pai" pensei: essa é tradução fiel da força política de um filme, do cinema e do Oscar. Um filme é um discurso, uma mobilização que a ficção 
permite fabricar.  

Adorei assistir ao filme de Walter Salles. Uma experiência de cinema, imagens lindas, atuações envolventes, tudo orgânico, tudo fluido. O filme me seduziu e me comoveu.

E então teve o momento em que me endireitei na cadeira e me lembrei do cansaço que estou de ver somente essa perspectiva branca e burguesa nos filmes brasileiros, sobretudo os que ganham repercussão internacional.  

A ditadura no Brasil existiu apenas para a elite político-econômica. É o que diz o cinema brasileiro. Tive muita vontade de ver a ditadura nos olhos de um trabalhador, por exemplo. Um filme que nos permitisse lidar com o retrato real deste país. Tive vontade de ver o que não está no filme.

O país onde as únicas cinco obras indicadas ao Oscar de melhor filme ou de melhor filme estrangeiro foram dirigidas por homens brancos do topo da pirâmide é o mesmo em que 0% de mulheres negras lançaram filmes comercialmente em 2016, segundo o primeiro estudo racializado da Ancine em 2018. De lá pra cá poucos estudos racializados foram publicados.  

Por outro ângulo, na década de 2010 vivemos um incrível aumento de filmes dirigidos por mulheres negras, 159 ao todo, mas que não tiveram performance comercial contabilizada pela agência – esses dados são da pesquisa Cinemateca Negra, realizada pelo Nicho 54 e coordenada pelo 
curador Heitor Augusto. 

O que esse breve recorte de dados revela – além da necessidade de produção de mais dados e evidências – é a intensa e crescente cinematografia negra diante de uma estrutural escassez de investimento para que esses filmes ultrapassem a seara doméstica e alcancem um lugar de maior repercussão no país e fora dele.  

O que isso demonstra sobre o nosso mercado, nossas políticas e meios de acesso? Um abismo estrutural. 

O que isso conta sobre as histórias retratadas nos nossos filmes? Uma narrativa unilateral.

Quando a efêmera polêmica do blackface que a atriz Fernanda Torres fez num programa de TV há quase duas décadas surgiu e morreu em menos de 24 horas, eu lamentei duas coisas: essa forma de tratar a causa racial sob a polêmica midiática e a perda da oportunidade de uma conversa séria, 
que produzisse algum algum compromisso para conosco, pessoas pretas brasileiras. 

Sobretudo neste momento em que o remake Trump II desmonta políticas de diversidade e envia um recado ao mundo da sua perseguição e desprezo pelas políticas de reparação da História escravista. Conquista social e desmonte neoliberal, um ciclo de violência e horror que precisa ser 
interrompido – e não importado. 

O cinema é um instrumento singular nessa luta. Não podemos nos esquecer da influência do cinema alemão na ascensão do nazismo, ou do cinema de Hollywood na força de ataque da Ku Klux Klan. E por outro lado, não nos esqueçamos também do que revelou Rubens Paiva, um exemplo positivo do que pode um filme fazer pela História de um país – e de uma família.  

Eu e outras pessoas iguais a mim, a exemplo da família Paiva, buscamos o reconhecimento do Estado brasileiro para os horrores cometidos no passado.  

No caso da dor racial, é preciso dois passos largos. O primeiro deles é o reconhecimento de um passado escravista de 4 séculos que perpetua sequelas violentas na estrutura brasileira; a segunda é que o país se comprometa com a criação de soluções – junto com as pessoas afetadas e envolvidas – para tratar desse passado. E isso é agenda, investimento, compromisso. E tudo isso é também cinema. 

Enquanto acompanho a bonita campanha brasileira no Oscar, eu torço pela construção de compromisso, oportunidades e investimentos para que uma mulher negra brasileira tenha alguma chance de ter seu filme indicado na próxima vez. O Brasil merece assistir e celebrar outra perspectiva da sua própria história. E nós, trabalhadoras negras de cinema, merecemos compartilhar o país que imaginamos em nossas mentes criativas e resistentes. 

*Fernanda Lomba é cineasta com mais de 10 anos de experiência como produtora-executiva, e se dedica hoje ao roteiro e direção. É talento Paradiso, foi residente na Citè des Arts e é sócia de Raul Perez na Mundi Produtora. Ao todo, produziu 6 longas para Cinema, 2 séries-doc para TV e 2 curtas-metragens. Atua como avaliadora de projetos e consultora de roteiro e direção, com destaque para Levante (dirigido por Lillah Halla) que estreou na semana da crítica em Cannes. Paralelo à carreira artística, é cofundadora e diretora-executiva da organização social NICHO 54.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

Edição: Thalita Pires