vai acabar?

Mais da metade dos rios brasileiros está secando; problema é maior onde há atividade agrícola intensiva

Perda de vazão é decorrente da perfuração de poços e uso excessivo das águas subterrâneas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Na bacia do São Francisco, 61% dos rios analisados mostraram potencial de perda de fluxo de água - Divulgação/Ministério da Integração Nacional

Mais da metade dos rios brasileiros está ameaçada pela perfuração de poços. A informação é de um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com colegas estadunidenses, e publicado em dezembro de 2024 na revista Nature Communications.  

Os pesquisadores analisaram os níveis de água em 17.972 poços em todo o Brasil para mostrar que 55% deles fica abaixo das superfícies dos rios próximos, fazendo com que as águas penetrem no subsolo. Assim, os rios acabam perdendo fluxo de água.  

"O alerta foi que em algumas regiões do país, a gente tem mais de 50%, até mais de 60% desses rios perdendo água para o aquífero. E lá nessas áreas a gente vai precisar de estudos mais detalhados para identificar qual o fator está realmente fazendo esse rio, que potencialmente ganhava água, agora estar perdendo. Ou se era um rio que já perdia e agora está perdendo mais", explica José Gescilam Uchôa, aluno de doutorado da Universidade de São Paulo (USP), campus de São Carlos, e primeiro autor do estudo. 

A pesquisa indica que o problema é mais grave em regiões secas e de intensa atividade agropecuária. “Essa redução tem sido associada ao aumento da captação de água subterrânea, especialmente para irrigação, como observado em uma das maiores fronteiras agrícolas, conhecida como Matopiba [região que soma Tocantins e parte dos estados na Bahia, Piauí e Maranhão]”, indica a pesquisa. 

“Isso estava acontecendo por causa do uso excessivo dessa água subterrânea principalmente nessas regiões”, explica Paulo Tarso Sanches de Oliveira, segundo autor do estudo, professor de hidrologia e recursos hídricos na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC-USP). 

O estudo alerta que a situação da perda de água dos rios não terá apenas impacto nas áreas locais, mas também poderá ter repercussões em larga escala, "uma vez que o Brasil desempenha um papel fundamental na segurança alimentar global, sendo um dos maiores produtores agrícolas do mundo".

A pesquisa publicada na Nature Communications focou no fenômeno da transferência de água dos rios para os aquíferos. No entanto, Uchôa indica que estudos regionais conduzidos em áreas de intensa atividade agropecuária, como o Matopiba, estabelecem a relação entre a seca dos rios e o consumo de água por essas atividades. 

"A gente consegue indicar que as regiões que têm muita atividade agrícola são regiões também que, provavelmente, tem rios que perdem água para o aquífero", afirma o pesquisador. Ele alerta para uma estimativa da Agência Nacional de Águas (ANA), que indica que as áreas irrigadas no Brasil vão dobrar nos próximos 20 anos. "Talvez em algumas regiões a gente poderia fazer estudos preliminares para verificar se aquela região realmente é uma região ideal para receber a atividade agrícola", ressalta. 

No oeste baiano, pequenos agricultores sofrem com falta de água

Para quem vive em regiões de avanço do agronegócio, a redução de água nos rios é visível e traz impactos nas atividades cotidianas, como o cultivo de pequenas plantações.

O servidor público Marcos Rogério Beltrão mora em Correntina, município no oeste da Bahia onde, há anos, os pequenos agricultores convivem com a falta de água. Nascido na zona rural, em uma comunidade tradicional, ele se sensibiliza com a escassez hídrica que impacta, principalmente, a agricultura familiar. 

Em 2017, milhares de pessoas organizaram uma manifestação para denunciar o uso abusivo da água pelas atividades do agronegócio, conhecida como revolta de Correntina. Quase dez anos depois, a monocultura segue avançando sobre o território e os pequenos agricultores sofrem para manter suas plantações. 


Manifestação em Correntina denunciou uso agressivo de água por parte do agronegócio / Aquivo/Brasil de Fato

"Houve o aumento do financiamento de grandes projetos de irrigação, enquanto a agricultura familiar foi cada vez mais perdendo área. Hoje, mesmo na região, a gente já perdeu a autossuficiência, por exemplo, do arroz", conta Beltrão. Isso significa que, antigamente, essas comunidades não precisavam comprar arroz de outros lugares. Hoje, isso não é mais possível.

Atualmente, os pequenos agricultores cultivam, principalmente, feijão e hortaliças. De acordo com Beltrão, isso só é possível porque muitos captam água do rio principal, o Arrojado, afluente do Corrente, por meio de pequenos canais que escoam a água até a plantação.

"Hoje, as comunidades dependem do rio principal, da calha principal. Algumas comunidades têm que beber a água do rio Arrojado, sendo que, até então, aquela comunidade tinha um riacho, tinha uma vereda que alimentava o rio Arrojado", conta.

Muitas veredas, pequenos rios que correm pelo cerrado, secaram e as famílias garantem o abastecimento hídrico também com a construção de cisternas, reservatórios de captação de água da chuva. 

O oeste baiano está inserido no Matopiba, e é banhado pela bacia do rio Corrente, que abastece o São Francisco. Segundo a pesquisa publicada pela Nature Communications, na bacia do São Francisco, 61% dos rios analisados mostraram potencial de perda de fluxo de água para o aquífero Urucuia, o segundo maior do Brasil.

O Urucuia é um imenso reservatório de água subterrânea, com cerca de 14 milhões de hectares (aproximadamente o tamanho do estado do Ceará) e 75% da área localizada na região oeste da Bahia. 

"Diversas pesquisas já indicam o esgotamento dos recursos hídricos superficiais. (...) E estamos verificando uma tendência de uma maior pressão sobre o aquífero Urucuia, com um maior número de outorgas para captação de água subterrânea em relação às águas superficiais", alerta Margareth Maia, pesquisadora do Instituto Mãos da Terra (Imaterra). 

Entre 2021 e 2024, Maia pesquisou as outorgas – autorizações de uso de água – concedidas pelo Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (Inema) da Bahia. A pesquisa resultou no livro Desmatamento e apropriação da água no oeste da Bahia: uma política de estado, desenvolvido em parceria com a Universidade Federal da Bahia, com apoio do WWF-Brasil e do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), no âmbito da Iniciativa Tamo de Olho, através do Projeto Ceres, apoiado pela União Europeia.

A publicação indica que quase 100% das outorgas emitidas no oeste baiano são destinadas ao agronegócio e 99,5% das captações
de água subterrânea outorgadas pelo Inema  estão localizadas no Aquífero Urucuia. Desde 2016, o número de permissões para a perfuração de poços na região aumenta ano a ano. "É possível sim que pequenos agricultores tenham outorgas de águas subterrâneas, mas de forma alguma são com o nível de vazão utilizado pelo agro", avalia a pesquisadora. 

Pivôs centrais

Em 2017, Correntina tinha 164 mil hectares de plantio de soja. Em 2023, a área saltou para 192 mil hectares. O município tem 41% do território destinado à agricultura.

Parte dessas lavouras é irrigada por sistemas de pivôs centrais, grandes estruturas mecanizadas com capacidade para consumir cerca de 50 mil litros de água por hectare por dia. Para comparação, uma pessoa precisa de 110 litros de água por dia para atender às suas necessidades básicas, segundo Organização das Nações Unidas (ONU).  

70% da irrigação por pivôs está no Cerrado, onde encontra-se o aquífero Urucuia. "Com a chegada da soja na região, chegaram os primeiros pivôs centrais. Por exemplo, aqui o primeiro pivô central que chegou foi no início dos anos 90", conta Beltrão.  

Em 2024, o Brasil somava 2,2 milhões de hectares irrigados por pivôs centrais, de acordo com levantamento da Embrapa. São Desidério, no oeste baiano, tem maior área irrigada por pivôs do país. Em 2023, São Desidério tinha mais de 53% do território ocupado por atividades agropecuárias, com mais de 357 mil hectares de plantações de soja. Naquele ano, o município ficou no topo da lista dos mais desmatados.

De acordo com o Atlas da Irrigação produzido pela ANA, o Brasil está entre os dez países com a maior área equipada para irrigação do mundo. O relatório aponta um aumento de 43,3% da área efetivamente irrigada por pivôs centrais no Brasil entre 2006 e 2014. Atualmente, o Brasil soma mais de 30 mil pivôs captando água das superfícies e dos aquíferos para as plantações.  

Em 2023, o Relatório de Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) identificou 34 casos de conflitos relacionados ao acesso à água em áreas rurais da Bahia, afetando 2.264 famílias. "A partir dos anos 90, inúmeros riachos e veredas começaram a secar. Aí houve um verdadeiro colapso na agricultura familiar", lamenta Beltrão. A Bahia lidera a lista de estado com maior número de conflitos relacionados à escassez hídrica. 

Edição: Thalita Pires